Pioneira neste jornal, abri a seção de contos que continuou depois.
Feliz por este feito.
Somente agora trago para vocês este conto.
Isolamento
2020.
Curitiba.
23 de março.
Coronavírus COVID-19
Isolamento voluntário.
Campainha. Desconfiada. Olho mágico. Surpresa. Depois de meses. Ali está o ex-namorado.
Apesar de saber, pergunta:
“Quem é?”
“Sou eu”
A voz ainda mexe com ela.
Abre a porta e quase o cumprimenta. Mas lembra de manter distância. Abaixa a mão. O abraço fica na vontade.
Isolamento social mexe com a gente.
Distância. Álcool gel. Lavar as mãos.
Sentam-se então no sofá. Nos extremos.
Ele pede desculpas, avisa que cortaram a água do seu bairro: precisa tomar um banho.
Que não tem familiares. Que os amigos não abriram a porta. Que lembrou dela.
Estas palavras foram um banho de água fria em seus desejos ardentes. Vontade de expulsá-lo.
O cheiro dele – que sempre a fascinou – fez mudar de ideia.
Isolamento social mexe com a gente.
Ofereceu box, água, sabonete e toalha.
Enquanto ele assoviava feliz no banho, abriu a caixa que estava embaixo da cama. Lá ainda estavam o robe e chinelos.
Deixou em cima da cama. Avisou em voz alta. Foi para a cozinha.
Lá, colocou o vinho na geladeira e preparou noisettes congelados.
“É só para mim” – tentava se convencer.
Mal ouviu o chuveiro desligando, gritou sobre os comes e bebes.
Mordeu a língua…
… mas isolamento social mexe com a gente.
Aquele sorriso gostoso, com cheiro de homem, entrou na cozinha.
Tentou se concentrar na conversa leve sobre cinema, livros e amenidades.
Não queriam falar do assunto recorrente.
As risadas apagaram as distâncias profiláticas.
De repente, já estavam se abraçando.
Isolamento social mexe com a gente.
Abriu os olhos depois do beijo, e já estavam na cama.
Corpos suados felizes repousavam esquecidos do mundo.
Era só um banho. Mas a noite foi brindada com sonos entrelaçados.
Isolamento social mexe com a gente.
Acordam cedo, com os pássaros – agora se escutam até os pássaros!
Vão para a cozinha. Ovos mexidos, chocolate, suco, frutas, coisas da despensa.
Ela nunca vê TV nesta hora, mas é o hábito dele, e ela permite.
Ali a realidade mata o sonho.
Que a pandemia piorou. Que agora é decretada quarentena forçada. Que NINGUÉM deve sair de casa. Que o número de mortos triplicou. Que o número de infectados explodiu. Que o cheiro da doença e da morte parece penetrar em todos os poros.
Sem ar ela vai até a sacada e observa o vazio.
Atrás dela, cheira o medo dele.
Não sabe se é medo da situação lá fora ou aqui dentro.
Isolamento social, não… quarentena mexe com a gente.
Não podem burlar a regra.
Ele fica.
Mas os mantimentos que ela comprou eram para UMA pessoa.
E os dias passam.
E começa a implicar toda vez que ele pega algo para comer ou beber.
E os banhos parecem demorados.
E a TV ligada vai irritando.
E começam a discutir por qualquer coisa.
Quarentena mexe com a gente.
Não precisavam mais da distância. Mas a raiva não permite mais uma aproximação.
Cada refeição, cada banho, cada briga pelo canal diferente, traz distanciamento.
Alimenta a raiva, o ressentimento, o ódio.
Uma noite, ela vai até a cozinha e … ele está comendo o último chocolate.
Ela pula em cima dele.
Leoa feroz com instinto de preservação.
Quarentena mexe com a gente.
No dia seguinte, ela acorda com o som da TV. Nela, avisam que tudo se acalmou.
A quarentena foi revogada.
Levanta devagar do chão da cozinha, pegajosa pelo líquido avermelhado.
Quarentena mexe com a gente.
(Texto e Foto: Susan Blum) Link para o Jornal Plural: https://www.plural.jor.br/noticias/cultura/isolamento/
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