novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......

novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......
convido-os a desenrolar alguns fios reais e ficcionais

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

FICÇÃO - A Bela e o Sapo

Era uma vez (ou duas, ou três) uma moça cuja beleza rivalizava com a riqueza. Ela tinha os dois em fartura. Mas vivia entediada, pois eram inúmeros os rapazes belos e ricos que a cortejavam. Ela tinha seus caprichos e um deles era a busca do amor verdadeiro. E isso significava - pelo menos para ela - que deveria amar alguém feio e pobre.
Porém, os rapazes feios e pobres não acreditavam no interesse real dela. E ela se entristecia.
O único lugar em que ela se refugiava e se sentia bem era na beira do lago, no Barigui. Tentando encontrar o jacaré, animal que - para ela - era feliz.
Todos os dias em que a moça ia até lá, encontrava um sapo que parecia a olhar com desejos. Seus olhos pidões, aguados, rumorejavam – era o que ela sentia – solicitações amorosas.

Com o tempo ela foi se apaixonando por aquela cor de pele tão diferente, aqueles caroços viscosos, aquelas membranas finas entre os dedos. Ia comparando com sua pele alva (tão comum), seus dedos finos e longos (que lhe pareciam agora como espinhos secos), com sua pele tão lisa e macia (argh). Em um gesto de rompante, ela agarrou o sapo e o levou para sua casa.

Mal entrou no lar, o sapo se pôs a falar:
- Agradeço, bela dama. Sou na verdade um belo herdeiro, de família tradicional curitibana. Um dia uma moça que foi por mim rejeitada conseguiu que uma mulher das artes mágicas me transformasse em sapo. Para dificultar a reversão da magia, ela lançou um feitiço de que eu não poderia falar com ninguém, a não ser que me recolhessem com carinho a algum lar. E agora posso falar e pedir que você me dê um beijo. Só assim posso retomar minha antiga forma: de um belo humano.

A moça o olhou com carinho. Mas ficou pensando. De novo cairia no mesmo problema: teria ao lado um rapaz rico e belo, com outras moças a desejá-lo. Decidiu: ficaria com ele para o resto da vida. Porém, sem nunca beijá-lo!
E assim foi. Até hoje a lua e o sol os encontram abraçados na cama... Moça e sapo, felizes para sempre!!
(Texto: Susan Blum. Imagens: retiradas da internet).

domingo, 27 de outubro de 2013

FICÇÃO - Metamorfose brasileira

Este conto está no meu livro Novelos Nada Exemplares.... mas como hoje é aniversário do "muso" do conto, eu posto aqui como homenagem.


Gregory Senter acordou um bicho-preguiça.
Lentamente, muito mais lentamente que o habitual, saiu da cama e percebeu que em vez de pés e mãos tinha garras enormes e seu corpo estava peludo. Depois de horas chegou até o banheiro (ao lado do quarto) e viu seu rosto peludo através de olhinhos pequenos.
Não sabia o que pensar, pois até seus pensamentos eram lentos, pareciam vozes em baixa rotação que chegavam de muito longe e até ouvir cada uma das palavras, já havia esquecido das primeiras... e assim não completava sequer uma frase.
Como se sentia muito cansado resolveu voltar para a cama.
Após longa viagem se deitou e fechou os pequenos olhinhos, a tempo de escutar sua mãe lhe dizendo: “Gregory, você vai chegar atrasado para a escola...”
Ela sabia que seu filho sempre se enrolava na cama e só levantava no último instante a tempo de comer algo, se arrumar e sair correndo para escola. Assim, deixou-o e foi arrumar a mesa. Gregory escutava seus irmãos se levantando, a cachorrinha correndo pela casa, sentia até seu rabo abanando e seus olhos acompanhando todo o movimento, como se também ela fosse para a escola. Um arrepio instintivo de bicho contra bicho levantou seus pêlos lentamente... até mesmo o arrepio era lento!
Percebeu, depois de muito tempo pensando, que lhe era agradável escutar a mãe falando seu nome... continuou pensando porque isso acontecia.
Sua mãe bateu na porta que ele trancava desde que começou a imaginar a Sandy com ele na cama e fazia “aquilo” que era tão gostoso, mas que parecia ser errado. Acostumada a não ouvir respostas de seu filho que sempre acabava se levantando e indo para o colégio ela só dava leves batidas na porta e continuava indo para lá e para cá, vendo como os gêmeos, que eram menores, estavam lidando com as roupas e mochilas de escola, perguntando se já escovaram os dentes, confirmando se os cabelos estavam penteados.
A filha, maior que Gregory, ainda se arrumava, pois tinha que pentear os cabelos várias vezes, colocar e tirar várias roupas, até se sentir satisfeita com a aparência. Se a mãe não ficasse em cima dela, se atrasariam para a aula.
Gregory escutou todos se arrumando, tomando o café e ouviu o barulho da porta se fechando, do carro sendo ligado e depois o ronronar do motor se distanciando. Estranhou que ninguém tivesse percebido sua ausência no carro. Mas na verdade quase ninguém percebia sua presença mesmo.
Passou o dia explorando o quarto, achou migalhas de biscoitos embaixo da cama. Viu a empregada que entrava com a chave extra, ela arrumava a cama, sacudia os cobertores na janela, passava uma vassoura rapidamente e ia para os outros quartos. Ouviu a família que voltava, aos poucos, desarticulados, para o almoço. O almoço nunca era com todos ao mesmo tempo, iam chegando e almoçavam. Geralmente Gregory era o último a chegar para o almoço e ficava com o que restou. Ninguém sentiu falta dele. Gregory foi diminuindo de tamanho durante todo o dia.
No dia seguinte sua mãe sequer bateu em sua porta. Gregory estava tão pequeno que podia passar por baixo da porta e ia para a cozinha pegar restos de comida antes que a empregada lavasse o chão. Geralmente ficavam ao lado da lixeira. Apenas tinha que tomar cuidado com a cachorrinha que tentava pegá-lo. Ela sempre foi uma exímia caçadora de baratas e ratos da casa.
Semanas passaram, Gregory geralmente ficava dentro do armário, pois era seu lugar favorito: o espaço interior do armário é íntimo e não abrimos o armário para qualquer um. A empregada quase não entrava no quarto, pois a cama estava sempre arrumada e muito menos abria o armário, principalmente agora, que não havia mais roupas a serem lavadas e guardadas como no início. Um dia um dos gêmeos achou o quarto vazio e Gregory, de dentro do armário, ouviu-o dizer: “Mãe, este quarto está vazio. Posso ficar com ele?” A mãe entra e Gregory a vê pela fresta da porta depois de tempos sem a ver. “Nossa! Um quarto vazio e vocês dois lá naquele quarto, apertados! Claro que pode se mudar para cá!”
Tempos depois, cansado de ficar se espreitando em cantos da casa, Gregory foi ao quarto da mãe e ficou esperando a oportunidade. A mãe tinha um porta-jóias sem chave. Era uma caixa de madeira com segredo e sua mãe dizia que nela estavam todas as coisas inesquecíveis. Conseguiu entrar na caixa em um dos raros dias em que a mãe a abriu. Acomodou-se entre os anéis e os brincos e passou o resto de sua vida entre as jóias da mãe. Bastava uma leve pressão secreta para abrir a caixa e libertá-lo. Mas ninguém a fez. O cofre tem muitos segredos para ser aberto aleatoriamente.






domingo, 20 de outubro de 2013

REAL - entrevista antiga - quem sou eu...

Anos atrás (eu estava fazendo doutorado na USP) um homem mandou uma entrevista para mim. 
Respondi e enviei. Mas nunca vi se saiu ou não. Dias atrás, limpando a caixa de e-mails, encontrei.
Gostei do que li e resolvi postar. Não fiz mudanças (queria ter o tom sépia da época).

Boa leitura.

ENTREVISTA PARA BLOGUE DE FRANKLIN JORGE
NOME  Susan Blum Pessôa de Moura
DADOS BIOGRÁFICOS  ser humano meio gato, nasceu em Curitiba, viveu em vários lugares, retornou a Curitiba. Curiosa como gato, fez duas faculdades, leu muita coisa, trabalhou em várias coisas. Dorminhoca como gato, sempre retorna ao lar, à casa, à concha, ao ninho, à raiz de sua vida.
FOTO
QUESTIONÁRIO
Quando nasceu?  No dia 4 de setembro de 1963, quando o Paraná pegava fogo. Décimo terceiro bebê da maternidade da base Aérea (hoje cindacta), nasceu com asas. Ah... 63 é uma boa safra!
Onde?   Curitiba, Paraná... dizem que “ritiba” é do mundo... mas não é verdade! Terra do pinhão, do Vampiro Dalton e do Frankenstein Xavier.
Como se chamam seus pais? Alfredo Pessoa de Moura (falecido) e Irmgard Luisa Blum de Moura. Sou mistura boa de Nordeste com Santa Catarina.
De onde são? Ambos brasileiros, mas com antecedentes diversos.
O que você herdou do seu pai?enorme amor pelos livros, pela leitura e pela escrita. Ele me deu a intelectualidade e me ensinou a discutir.
E de sua mãe? A força de vontade, a garra, a luta e a não desistência pela vida. Ela me deu o amor e me ensinou a amar.
Dê-me fatos para esclarecimento de heranças. Meu pai deixou uma biblioteca de uns mil livros. Infelizmente eu não estava em Curitiba quando ela foi desfeita e não pude guardar alguns. Minha mãe luta até hoje, é forte, é amorosa, nunca reclama e sempre ajuda a todos.
Quem é você?  Alguém. Uma pessoa que tenta se achar, que descobre falhas, que comete erros, mas que sempre busca acertar cada vez mais. Uma pessoa em constante mutação. Um ser humano comum.
Mais fatos. Nasci. Tentei estudar e tirar notas boas (meio difícil). Esotérica, fui para outros lugares. Em outros lugares acabei casando. Depois dessa experiência acabei separando. Voltei para casa. Resolvi fazer segunda faculdade. Descobri a verdadeira paixão: Letras!!! Fui dar aulas. Tento escrever livros. Pesquiso sobre autores maravilhosos. Estou amando um homem incrível. Amo dar aulas em uma ONG para menores carentes. Ainda estou na metade de minha vida!
E sua infância? Detestava (e nunca via) os Trapalhões, preferia sair de bicicleta e me enfiar nos matos perto de casa. Escondia a bicicleta e subia em árvores para observar as pessoas. Asmática, nunca podia fazer muita coisa. Sempre amei gatos e os recolhia da rua (cachorros também) – minha mãe ficava louca! Tive periquito (meu pai me deu um casal), tive uma tartaruguinha (acharam na rua e me deram), tive alguns cachorros e tive vários gatos. Li muito desde criança. Relia avidamente todos os livros que meu pai me dava. Uma vez ele deu livros para todos os filhos: o conde de montecristo para minha irmã, os 3 mosqueteiros para meu irmão, não lembro do livro do terceiro irmão, e o meu: O corsário negro! Lia todos os livros sempre. Amava! Aos 13 ele me fez a carteirinha na Biblioteca Pública. Descobri Allan Poe e li todos os livros que existiam dele na Biblioteca! 
Como brincava?  Andar de bicicleta, ler, subir em árvores, ler, subir no armário do quarto, ler, dava aulas para as bonecas, ler, fotografar (meu pai me deu uma máquina, daquelas que eram descartáveis – tirava foto de tudo!).
Quando deixou sua terra? Deixei para dar aulas de Gnose em outras cidades, sempre voltava. Sempre viajava de novo. Por fim, retornei e estou aqui há anos.
Que coisas tem feito? Dou aulas. Escrevo. Pesquiso. Saio com amigos. Leio muito. Dou mais aulas. Estou tentando terminar a tese de doutorado, sobre o livro 62.modelo para armar, de Cortázar!

(aqui estou dando uma palestra na Petrobras, sobre um assunto que adoro: Imagem!)

sábado, 19 de outubro de 2013

REAL - Crônica TODA LETRA - Tenho, logo existo!

 Existir. Palavrinha estranha que permite que reconheçamos, ou não, os outros ou as coisas. De que forma existimos? De vários jeitos. Alguns deles, mais comuns hoje em dia, sem contar o nome e o sobrenome:

Dígitos. Quanto mais dígitos a pessoa tiver, mais ela existirá e não estou aqui falando de idade. Já se foi a época em que as pessoas com mais idade eram mais respeitadas. Hoje em dia os idosos não são centro das atenções e suas histórias repetitivas como discos arranhados apenas prolongam uma dor arrependida de termos dado atenção, de termos colocado a agulha nas primeiras ranhuras com um simples “Olá, como vai?” provocando com isso o início do derramamento da areia na ampulheta de anos empoeirados. Cada pedrinha da areia uma doença, uma dor, um arrependimento, uma reclamação...
Não. Estou falando aqui de outros dígitos. Os dígitos monetários. Como no verso de Trilussa, estou falando daquele indivíduo, aquele “um”. Que se transforma após ter vários zeros seguindo-o. Quanto mais zeros seguindo o “um”, mais ele terá outros zeros que o admiram, que puxam seu saco, que o elogiam falsamente.

Digital. Mas você também pode existir se estiver ligado a outro digital: o mundo virtual. Uma vez me disseram que se eu não achasse o meu nome no Google, eu não existiria. Como sou curiosa desde pequena (vide Menina curiosa ) fui colocar meu nome no Google. Após breve expectativa, descobri que eu existia para o mundo. Posso não existir para aquele homem que considero fantástico, mas existo para o Google.

Digital. Também existo se tenho outra digital: uma digital que abre portas para mim (literalmente, pois a porta do CELIN só abre após eu inserir meu dedo nela), apesar de por vezes demorar para me reconhecer (então não sou só eu que demoro). Bastam algumas tentativas e logo escuto o som da porta liberando minha entrada. Esta é a mesma digital que está ao lado de meu nome, na minha carteira de identidade. Um labirintozinho de sulcos em um redemoinho.

 Então, parece que até que não é difícil existir. Caso você tenha um, ou dois, ou três dos acima citados, você, sem sombra de dúvida... existe!
 Mas conheço casos de crianças que não existem. Pequenos brasileirinhos que praticamente nascem trabalhando e – consequentemente – ajudando o país a existir no cenário mundial. Mas que não existem literalmente. E digo isso não somente pela invisibilidade social (a não ser quando estão muito perto do nosso olhar e que seu cheiro é sentido pelos frágeis olfatos acostumados a cheiros de carro novo ou amaciante nas roupas, além de perfumes franceses). Mas também por outros fatores.
Quem são estas crianças?

São brasileirinhos descartados que nos ajudam a saborear uma especiaria maravilhosa: castanhas de caju.
Devido ao processo de fabricação da castanha estes seres inocentes, sem infância, perdem toda e qualquer chance de existirem. São seus dedos que deram origem aos vários nomes citados anteriormente: dígitos, digital. São seus dedos que tiraram a possibilidade de existirem. Os dedos que deviam estar ocupados com pipas, bexigas, guidão de bicicleta, segurar bolas, jogar pedras no jogo da amarelinha.
Estes seres infantis não existem. Nunca existirão. Foram descartados pela sociedade que tanto valor dá ao pensar! E os culpados disso somos cada um de nós! Porque não pensamos sobre isso. Logo, também não existimos como seres humanos!


Curioso sobre os dedos trazerem os dígitos e digitais? Veja mais em http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/odiss-ia-digital-a-aventura-do-conhecimento-humano-do-dedo-ao


Quer ler uma linda historinha sobre o caju? Procure o livro Tempo de caju, de Socorro Acioli, com ilustrações de Maurício Negro (editora Positivo – projeto Zepelim).