novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......

novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......
convido-os a desenrolar alguns fios reais e ficcionais

quarta-feira, 30 de abril de 2014

TODA LETRA - Esqueleto de alma


Um pedacinho incrustado entre os dentes: um resmungo que queria sair aos 15 anos.
Uma unha encravada no pé direito, uma vontade de viajar que ficou presa.
No esqueleto da coluna, uma envergadura que não quebra: o pai paralítico.
No olho esquerdo um cisco teimoso, um choro engolido aos cinco anos.
O mijo que não existe mais foi o medo do olhar do pai.
Uma saudade escondida no canto esquerdo inferior do coração, o homem que ainda amo.
Um nozinho na garganta por não ter feito algumas coisas que desejava.
Uma cosquinha na ponta dos dedos, aquela história só pensada e esquecida.
Uma caspinha de ressentimento, o grande amigo da faculdade.
Um cheiro de infância que está solta no balão do pulmão.
A lágrima de alegria que se infiltrou naquela ruga mais seca.
Aquele filme e aquele livro que não li ou assisti, que abriram os espaços entre os neurônios.
Os pensamentos esquisitos e os outros (“antenados”) que se perderam atrás das caixas de memórias.
Os objetos dentro das caixas de lembranças, que foram se amontoando, esperando uma limpeza nunca feita.
Os sons de todas as músicas ouvidas, cantadas, dançadas e embaladas em outros corpos e que ficaram pirogravadas na bigorna dos ouvidos.
As poeiras dos desejos não satisfeitos ( e dos satisfeitos) que tecem cortinas nas meninas dos olhos.
Os amores e desamores que fluem nos refluxos do estômago junto com as borboletas.
Os passos dos medos e anseios que ecoam por dentro dos ossos.
Esta é a alma do meu esqueleto. Sou eu.
E você? Do que é feito?

(texto: Susan Blum. Imagem: retirada da internet.)

terça-feira, 29 de abril de 2014

TODA LETRA - Pedaços de mim

Olá para todos.
Saiu mais uma crônica minha no Toda Letra.
Visitem, leiam, curtam, compartilhem.
Um abraço! 

PEDAÇOS DE MIM  (basta clicar no título)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

REAL com ficções - Moça tecelã e Lila

Conheço e trabalho há anos com o texto "A moça tecelã" de Marina Colasanti.
Hoje recebi, de um ex-aluno e agora amigo, um curta maravilhoso que me fez chorar:
Lila.
Insiro aqui os dois na esperança de que alguns ex-alunos relembrem das minhas aulas sobre intertextualidades e sobre hipertextos.
Um abraço  a todos.
Boa leitura e bom curta!

****************
(foto: Susan Blum)
A Moça Tecelã
Por Marina Colasanti

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo
sentava-se ao tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos  do algodão  mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.

— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.


— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.  Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Marina Colasanti 
(1938) nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei, mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em amor, Contos de amor rasgados, Aqui entre nós, Intimidade pública, Eu sozinha, Zooilógico, A morada do ser, A nova mulher (que vendeu mais de 100.000 exemplares), Mulher daqui pra frente, O leopardo é um animal delicado, Esse amor de todos nós, Gargantas abertas e os escritos para crianças Uma idéia toda azul e Doze reis e a moça do labirinto de vento. Colabora, também, em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

Texto extraído do livro “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”, Global Editora , Rio de Janeiro, 2000, uma colaboração da amiga Janaina Pietroluongo, da longínqua Oxford.

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Curta: LILA 
Prestem atenção nos detalhes maravilhosos do curta.

Espero que relembrem  do que sempre falo em sala.

Um abraço a todos e um ótimo final de abril.

domingo, 20 de abril de 2014

REAL (ou ficção) - Visita do espírito

Ei leitor! Que dia é hoje?
É Páscoa, senhora.
Então FELIZ PÁSCOA!


Esta noite (19 de abril de 2014) recebi, ao badalar da meia-noite do relógio do vizinho, uma borboleta-espírito.
No começo achei que fosse sonho, mas tinha acabado de deitar e fiquei observando aquelas asas encarquilhadas, cheias de nervuras abertas, com a ausência de quitinas. Ela não era tão bela quanto viva, era mais fria, sem cores. Mas havia beleza nestes “ossos” aparentes dela.

Pensei em levantar para pegar a Sony ou a Nikon e tirar fotos dela voando pelo quarto.
Mas ela reagiu, como que enfurecida (vi isso mais pelos gestos de “ameaça” dela comigo do que por alguma linguagem, já que ela não tinha cabeça nem corpo. Apenas as asas secas, mas ainda maleáveis para voar). Sentei-me na cama, liguei o abajur na luz mais fraca, pois não queria machucá-la (esqueci que ela não tinha olhos?) (ou era para ainda achar que fosse sonho?), e fiquei a observar.
Então ela me disse (não me pergunte como, caro leitor, afinal nem sempre entendemos as coisas que acontecem conosco - nem em sonhos, nem em vida), que ela era o primeiro espírito que me visitaria nos próximos 3 dias. Na hora achei que fosse piada, pois não é Natal. Hoje é domingo de Páscoa e os três dias de Cristo já se passaram, ele já ressuscitou. (Não que eu me ache Cristo, mas também não me acho sovina - ok parentes, se abstenham de comentários!).
Ela – daqui por diante a chamarei de Lepi Seca – então iniciou sua fala:
- Você era uma menina muito quieta, mas ao mesmo tempo traquinas. Gostava de observar as pessoas, mas não fazia o bem como devia. Chegou a roubar de uma amiguinha um brinquedinho bobo.  Não ajudava sua mãe como devia. Não obedecia o tempo todo a seus pais. Por isso levou um tapa de sua mãe (uma única vez na vida).
Confessei minha culpa com meu olhar que se abaixou para a coberta fina. (leitor, só agora que descrevo o que me aconteceu de noite é que percebo o quanto foi parecido ao gesto de cachorros que sabem que fizeram besteira quando lhe chamam  a atenção).
Um silêncio prolongado se seguiu e achei que poderia levantar os olhos, pois a Lepi Seca já não deveria estar mais ali. Mas o bater das asas já a denunciou antes de meus olhos totalmente levantados.
_ Você teve uma adolescência incomum, cuidando de um pai paralítico, mas sabia que podia ter feito muito mais. Que se escondia no quarto, ou procurava sair de bicicleta pela vizinhança, escondendo a mesma no meio do mato e subindo em árvores, passando a tarde ali, só para não ter que ver o pai ou ajudar sua mãe em casa ou com ele.  Fingia que ia fugir de casa. Imaginava pedindo abrigo nas casas maiores, nem que fosse como empregada, mas logo lembrava que detestava limpar seu quarto. Quanto mais uma casa inteira. Então desistia de fugir e voltava para casa de tardezinha.
Novamente abaixei os olhos culpados, desta vez sabendo que não adiantaria ficar com eles baixos por muito tempo. A Lepi Seca continuaria ali. Então deveria enfrentar de vez tudo para me livrar logo desse ser ao mesmo tempo fascinante, mas que me trazia lembranças dolorosas.
Antes mesmo de levantar ela continuou – eu quase perguntei para que a visita de mais espíritos se ela estava me dissecando por inteiro – mas o farfalhar das asas me fez ficar quieta e continuar ouvindo:
- Na  faculdade você se escondia nos livros e estudos ou no trabalho, que cedo iniciou, com 17 anos, para novamente fugir de ajudar. Sentiu-se aliviada com a morte dele. Entrou na Gnose para sair da cidade. Sempre fugindo. Achava que estava fazendo o bem para os outros. Casou-se como novo tipo de fuga. Trabalha como fuga. Comprou um apartamento como fuga. Você não faz nada para os outros.
Dessa vez não consegui me calar. Precisava me defender.  Retruquei que trabalhei por anos em uma ONG para menores carentes, que procurava (por decisão minha e trato comigo mesma) fazer ao menos UMA coisa boa para alguém por dia. Que procurava ajudar aos demais, que estava cuidando de minha mãezinha  (tanto na primeira cirurgia dela, quanto nesta de agora); que procurava atender bem aos alunos, incentivando a ética e bondade neles; que estava com o projeto FESTA; que dava aulas (sem receber nada por isso) para os haitianos; que procurava  ajudar aos amigos e as pessoas ao redor; que participava de doações para algumas instituições.
Ela apenas deu uma sacudida de asas como se fosse um “dar de ombros”.
Calei-me. Não entendia. O que mais eu podia fazer? Sou só um ser humano.
Lepi “riu”: - mais fugas. Continua fugindo do principal.
E eu, sentindo calafrios que associei à febre da noite, finalmente fiz a primeira pergunta dirigida à ela:
- Do que estou fugindo? O que me falta fazer?
- Se amar mais, se doar mais para você mesma. Já não disse Ele: amai uns ao outros como a si mesmos?  Você se ama de verdade, Susan? Daria sua vida por você?
Então acordei. Essa é a questão! Minha consciência teve um despertar tão forte quanto o estalido das asas secas de Lepi.
***
Lépida me sentei na cama ao tocar do celular. O domingo já começou há algumas horas. Ressuscitei.

Não sei se terei mais visitas ... mas Lepi permaneceu aqui. Ela pousou no meu homem de desenho.   
(Texto e imagens: Susan Blum - baseado em um sonho)

sábado, 19 de abril de 2014

FICÇÃO - texto-imagem - Baile

O choque de correntes pelo chão ecoa na madrugada.
Das janelas,a luz funérea lunar penetra friamente pelas janelas.
Toda aquela história de amor é cinza e pó pelas mesas.
Mas quem apura os ouvidos consegue escutar, além das correntes, a música do baile.
Era o baile do casamento.
O noivo olhava para seu relógio de bolso, herança do avô, a hora da surpresa para a noiva.
Pediu ao seu melhor amigo que a levasse para o jardim. Ali faria a surpresa. Daria o presente que ela tanto desejava: uma corrente de ouro com diamantes que brilhavam como a lua cheia.
 Guardando o relógio no bolso, com a corrente dele pendurada fora, ele segurou a caixinha e foi para o jardim.
Distinguiu ao longe o amigo com a noiva. Sorriu pela cumplicidade do amigo.
Sabia que logo ele a deixaria ali sozinha, para que então ele entrasse no clarão lunar e entregasse seu presente.
Mas ao invés disso, presenciou algo que torturou seus olhos: a noiva, mesmo com a recusa do amigo, o abraçou e beijou.
O gelo do ódio picava seu corpo inteiro. Viu o amigo horrorizado ainda dar uns passos para trás, antes de virar o rosto em sua direção. 
Então a noiva também se virou - como
 em    c â m e r a     l e n t a    e o viu.

O choque das correntes ainda ecoa em seus ouvidos. Foi a primeira coisa que viu por perto. As correntes que fechavam o portão antigo de ferro. 
Um pouco do vermelho respingado em seu terno, na corrente do relógio de bolso que era do avô, na corrente de ouro com diamantes que estava ao lado da cabeça aberta da noiva.

Fechou-se o local do jeito que estava. Nunca mais teve baile, Nunca mais teve música. Nunca mais teve cor.

   (Texto: Susan Blum. Foto: Zé Suassuna.)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

FICÇÃO - Alma alada


Lá.
Na lama,
mirei o monge.
Era o lama.
Sua mala:
só a alma.
Nada má.


Alada alma,
sussurrando o segredo:
AMAR.
(Texto: Susan Blum. Fotos: Gregory Colbert)

terça-feira, 8 de abril de 2014

FICÇÃO - Indubitavelmente


Meia idade, meios contos de fadas, meia crença no amor.
Afinal, é adulta. E, como tal, sabe das “verdades” do mundo dos relacionamentos: Interesses, sexo, carências.
Por um acaso o conhece. Acha interessante gostarem de literatura e artes. Desenhos, pinturas, romances, poesias.
Leminski já disse:
não discuto com o destino.
o que pintar eu assino.

Acabam saindo algumas vezes. Em uma delas, acabam se beijando. Gosta dos beijos dele. Ele diz gostar dos beijos dela.
Mas em todas as relações de sua vida sempre teve algo bom. Nada demais.
Uma noite, em um jantar na casa dele, acabam ficando juntos. Ela estranha o fato de ter sido bom demais ficar com ele. Ele fala do cheiro dela, da harmonia de desejos.
Mas é meia-noite. Ela, de meia idade, volta para casa com seus meio contos de fadas. Sua meia crença no amor. Nada demais.
Começam a sair quase sempre. Todo dia trocam mensagens, olhares, carinhos. Na terceira vez que ficam juntos, ao terminar o sexo gostoso, ele a abraça em conchinha. Coisa que geralmente faz e que a deixa encantada.
Neste dia, um morninho começa a se insinuar pelo plexo solar dela, iluminando todos os poros de seu corpo, trazendo uma sensação nunca antes sentida. No começo algo totalmente incompreendido. Ela fica apenas observando (como é de seu costume, para ver o que virá). Até que inunda seu ser completamente e ela percebe: é a certeza. Nunca antes totalmente sentida. Em todas as relações sempre existiu a pontinha da dúvida, o resquício da incerteza.
Ela o abraça mais forte, puxando seus braços sobre ela, encostando mais ainda seu corpo no dele, sente um beijinho na sua nuca (ele diz que acha incrível como seus corpos se amoldam). E então ela chora. Chora porque finalmente percebe que é real. Que é possível. Indubitavelmente!
Ficar com alguém sentindo toda a certeza plena. Que aquela sensação iniciada no plexo tomou conta de cada poro de seu ser destruindo qualquer ínfima dúvida, qualquer minúscula incerteza. Uma leveza e paz perfumam seu ser. Ela sabe: É ELE!

E o choro que ela tenta esconder dele, pois não saberia explicar e nem quer que ele tenha uma impressão errada, vem em fluxos de consciência.
Naquela noite, em sua casa, sozinha na cama, ela dorme como um anjo. Porque agora ela sabe. Percebe que cada gosto parecido, cada carinho trocado, cada beijo, abraço, etc tem um gosto mais que especial.
Meia idade, inteira certeza de que existe o amor. E que o amor é doar. Se dar. Totalmente. Indubitavelmente.

Um dia algo inesperado acontece. Um pequeno mal-entendido. Ele diz para ela que precisa de tempo e espaço. Ela cede, na certeza de que tudo ficará bem. Afinal, pela primeira vez ela sabe. Indubitavelmente sabe: é ele.
Porém não há o retorno. No começo ela não entende.
Mas tudo bem. Não estão juntos. Mas não há problema.
Porque este amor. Esta certeza. Esta sensação deliciosa de plenitude...

Estão ali. Com ela. Indubitavelmente. Ela pode ter se enganado com a certeza de que ficariam juntos. Mas ela não se enganou na certeza do sentimento (pois ele não se apaga, não diminui, não morre): É ELE! 
(Texto e fotos: Susan Blum)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

FICÇÃO - Bala perdida - (de Moacir Costa)


Uni, duni, tê.
Salamê, minguê; um sorvete colorê.
O escolhido foi... Você!


AR-15, brincadeira, dedo, gatilho, boca de cano; tiro...

    O projétil passou zunindo pela fronte dele, vindo da janela estilhaçada. Passou pelas folhas do vaso de samambaia e pelo meio certinho, do peito de sua companheira.
    Só houve tempo de ele virar-se assustado, e vê-la arfar, fazer cara de louca e cair de bruços, no chão; manchando de sangue o carpete novo, ainda por pagar.
    Ele olhava para a janela quebrada e voltava a olhar pra ela caída, como que querendo entender alguma coisa, como que procurando fazer desesperadamente o tempo voltar atrás.
    Nem correu em direção a ela, já não havia o porquê, a bala tinha aberto um buraco enorme em suas costas, antes de ir alojar-se quietinha na parede oposta, na moldura cinzenta do Renoir falso.
Segundos se passaram, ate que o mundo dele viesse ao chão, que fossem enfim, desencadeadas todas as cenas imagináveis para tal situação.
    Berros, corridas nervosas a lugar nenhum, pedidos de socorro, desespero.

Fim.

Enquanto isso, acima do cume dos cumes; no alto dos altos; deuses meninos brincavam de destino:

Uni, duni, tê.
Salamê, minguê; um sorvete colorê.
O escolhido foi... Você!
(Texto: Moacir - Magro - Costa. Pinturas: Renoir.)