novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......

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convido-os a desenrolar alguns fios reais e ficcionais

terça-feira, 29 de setembro de 2015

REAL - Cortázar - 4 ensaios

estes artigos sairam em  http://www.jornaldepoesia.jor.br/BHAH08juliocortazar.htm
A volta ao mundo de Julio Cortázar em quatro ângulos | Susan Blum | Ensaio
1. Continuidade de espaços: o espaço no conto Continuidad de los parques, de Julio Cortázar
Cortázar é um escritor que busca o envolvimento do leitor e isso pode ser percebido em vários momentos de sua obra. O livro Jogo de Amarelinha (Rayuela, 2003) é um dos exemplos clássicos desse envolvimento, mas pode-se encontrar um germe disso em “Continuidade dos parques”, conto pertencente ao livro Final del juego (1974). Nesse conto Cortázar faz uma crítica sutil ao leitor passivo e procura de forma inusitada “acordar” o leitor empírico para o questionamento das realidades. Nesse ensaio procuro evidenciar esse fato ilustrando com uma litografia de Escher que aborda o mesmo aspecto de envolvimento entre sujeito e objeto.
O brevíssimo conto “Continuidad de los parques” relata dois acontecimentos. Em um primeiro, um homem de negócios chega na sua casa, se acomoda em sua poltrona e penetra em sua leitura de um romance. No segundo, há um crime passional: dois amantes tramam o assassinato de um homem de negócios. Os dois relatos surpreendem por seu intenso realismo e se lidos em separado nada se encontra neles de elemento fantástico. O fantástico se apodera deles quando os dois acontecimentos se (con)fundem na sintaxe do relato: o romance que é lido pelo homem de negócios é justamente a história dos dois amantes que resolvem matar a um homem de negócios, e justamente no momento em que este está lendo um romance.
Nesse conto, tal como no quadro de Escher (1994) Exposição de gravuras, [1] em que o espectador se vê envolvido no próprio quadro, o leitor está envolvido na leitura. Os dois, conto e quadro, representam de forma exemplar a relação narcísica entre texto e leitor ou entre quadro e espectador (observador). Em ambos há uma cumplicidade entre espectador/leitor e quadro/livro a tal ponto que o envolvimento é levado às últimas consequências, pois ambos estão dentro do objeto observado. Quando Escher aponta que se o admirador do quadro observasse o seu entorno perceberia que fazia parte do mesmo, também o leitor do conto de Cortázar, se voltasse sua cabeça, poderia ver o assassino do livro que está lendo, atrás de si.
Escher expõe que a única dificuldade que enfrentou nesse desenho foi a ligação entre todas essas “realidades” e que acabou por ficar como um “ponto branco”. Cortázar apresenta em um ensaio um elemento chamado “ponto vélico”, ele seria aquele ponto no barco para onde convergem as velas e que altera o equilíbrio de tudo. Na literatura de Cortázar ele pode ser considerado o ponto que é uma fissura entre “realidades”, [2] também promovendo uma alteração do equilíbrio do leitor, seja através da não-linearidade do texto ou através da subversão de tempo-espaço.
Assim, o ponto vélico seria para o conto “Continuidad de los parques” o que o “ponto branco” de Escher é em seu quadro: uma “fissura” que permite a inter-relação de realidades. Nós como leitores também podemos ser uma história que outra pessoa esteja lendo. Por que não?
No conto o ponto vélico seria o livro, um instrumento que permite uma fissura entre duas ou mais “realidades”. Também o leitor que está lendo o conto se vê envolvido pelo texto. Espectador e leitor se encontram “dentro” da obra. Em “Continuidad de los parques” o próprio título já dá a definição do que ele apresenta. Nesse caso, uma continuidade, uma continuação de espaços e de histórias. A vida imita a arte que imita a vida que imita… Esse miniconto possui tal complexidade.
O próprio Cortázar comentou: “Yo, que no escribo nunca dos veces un cuento, éste lo he escrito quince veces y todavía no estoy satisfecho. Creo que le faltan aún elementos de ritmo y tensión para que pueda llegar a ser diminutamente perfecto” (Cortázar in Bermejo, 2002). Ele afirma não se recordar de como esse conto surgiu, ao contrário de outros contos que surgiram em sonhos ou que são autobiográficos (cf. Prego, 1991), mas ao mesmo tempo se sabe por uma fala de Cortázar, ainda nesse livro de Prego, que quando ele era pequeno e lia ocorria uma “capacidade de sair das coordenadas tirânicas do tempo e do espaço e [se] perder, mergulhar completamente na leitura”, em uma absorção que mais tarde o levou a ter sentimentos de atravessar barreiras temporais e espaciais já não mais através do livro, mas pela linguagem em suas obras. E é isso o que ocorre de certa forma nesse conto, pois há um atravessar de fronteiras.
Pode-se dizer que o personagem-leitor do conto “convoca” essa continuidade pois já havia iniciado a leitura do romance dias antes, ou seja, já tinha conhecimento parcial do enredo do livro. O livro, objeto do mundo circundante, já partilhava, através do texto narrativo, um entorno relacional com o leitor ficcional, fazendo então parte de seu entorno pessoal. O personagem-leitor retoma a leitura em seu retorno à fazenda; ou seja, ele se encontrava em um espaço mais organizado e racional, que é a cidade, e vai a um espaço mais selvagem onde os instintos afloram mais, que é o campo. Esse último é exatamente o espaço descrito no romance lido por ele. A viagem é realizada por trem: [3] além de ser um elemento atravessador, o trem é translado em que o personagem não necessita ter atenção, pois não é ele quem está dirigindo e isso permite uma distração [4] (ou viagem interior). Chega em casa e após resolver alguns assuntos (assim pode “viajar” mais tranquilo, sem maiores responsabilidades) recosta-se em sua poltrona favorita, em seu calmo escritório, que dá para o parque de carvalhos (um local perfeito para reiniciar a viagem). Ou seja, posiciona-se exatamente em um ambiente (conscientemente ou não) tal qual encontrava na leitura.
Assim os espaços são “coincidentes” e trazem à tona o fantástico no conto. Mas não somente a coincidência espacial influi no resultado insólito, pois a coincidência temporal também influi. Essa simultaneidade é percebida através da descrição dada quando o personagem-leitor se posiciona em frente aos janelões que lhe mostram a paisagem em que “danzaba el aire del atardecer bajo los robles”, e o amante, personagem do romance, distingue na “bruma malva del crepúsculo la alameda que llevaba a la casa”. Ou seja, apresentam-se dois tempos iguais no espaço “ficcional” e no “real”, da perspectiva da personagem. Além disso, pode-se mencionar a coincidência corporal entre o leitor ficcional e o personagem de seu livro (ambos sentados em uma poltrona na sala, de frente a janelões e de costas para a porta).
Leda AstorgaÉ relevante o fato de o personagem ter se deixado levar conscientemente de seu mundo circundante para o interior do livro. A leitura como ato solitário e privativo acaba promovendo uma identificação e se insere no entorno pessoal do leitor, empírico ou ficcional, provocando reações em seu espaço interior. A história vai delineando esse novo entorno, como se percebe pelas frases: “la ilusión novelesca lo ganó casi en seguida. Gozaba del placer casi perverso de irse desgajando línea a línea de lo que lo rodeaba”; e ainda: “palabra a palabra, absorbido por la sórdida disyuntiva de los héroes, dejándose ir hacia las imágenes que se concertaban y adquirían color y movimiento, fue testigo del último encuentro en la cabaña del monte”. O leitor passa então de um simples voyeur de manchas no papel, para um voyeurmais ativo, inserido na narrativa. Um voyeur do encontro dos amantes, por exemplo.
Nesse encontro dos amantes na floresta se confirma o paradigma do jardim [5] que é visto como um topos literário e artístico de forte matiz erótico. E nesse caso mais forte ainda, por tratar-se aqui de um espaço mais desordenado que o do jardim. O mato e a floresta são representações de um amor erótico e sensual sem racionalismos, uma forte sexualidade pagã que o jardim apresenta de forma mais comportada e moralista. Os amantes se deixam levar pelos desejos, e sua psique (espaço interior) é mais emotiva e instintiva, pois querem matar alguém para fazer sobreviver seu amor.
Esse espaço no qual os amantes se encontram, a floresta, apesar de espaço público é um topos “selvagem” resguardado dos olhares curiosos, pois é “fechado” pela densidade da mata. Para Zubiaurre o espaço da mata é próximo do jardim, que o domestica; ele tem “la fuerza del instinto y la pujanza de una sexualidad pagana y libre (…) la libre expresión de la sexualidad en un entorno natural” (Zubiaurre, 2000). O erotismo da paixão proibida é levado ao extremo através da aniquilação de um outro para se tornar possível a consumação da própria paixão.
A cumplicidade do leitor-personagem (e até mesmo o do leitor empírico) em relação ao texto leva-o ao ponto de ser espectador do encontro na cabana. Ele é então testemunha ocular do que acontece no livro e testemunha sentimental do que acontece em seu próprio interior. E o mesmo se dá, em uma dimensão a mais, com o leitor empírico. Estabelece-se um diálogo com as antigas leituras e sentimentos, há comparações com ocorrências pregressas e isso pode ser transferido do leitor empírico ao leitor ficcional, por analogia, apesar de não haver referências a isso no texto. Por semelhança os espaços físico e textual do leitor ficcional se (con)fundem com os espaços físico e textual do leitor empírico (nós mesmos), e como um caracol infinito, de reflexos especulares, vai se refletindo indefinidamente: eu leio, que ele lê, que outro lê, que ele lê, ou seja, vários observadores, um observando e abarcando o outro, em um eterno voyeurismo textual circular. Assim como no quadro de Escher nós observamos um desenho de um homem que observa quadros…
Pode-se dizer então que o narrador-leitor se encontrava mais como um espectador, pois tudo estava decidido desde o começo como se percebe na frase “…y se sentía que todo estaba decidido desde siempre”; ele já previa (afinal já tinha um início de leitura anterior) o que aconteceria e ele mesmo se posicionara de acordo com o enredo, como dissemos.
Nada fora esquecido, toda a descrição do espaço que o “assassino” deveria percorrer estava nitidamente traçada pela mulher: as salas, as varandas, a escadaria, as duas portas e o quarto. Todo o espaço, tal qual um cenário, já estava montado, ele só precisava se posicionar nesse “cenário” da vida/livro: a porta do salão, os janelões iluminando o alto espaldar da poltrona de veludo verde e a cabeça do homem na poltrona, lendo um romance. Os janelões promovem um diálogo entre exterior e interior, como o diálogo que existe entre o livro lido pelo leitor ficcional e o livro lido pelo leitor não-ficcional. No caso desse conto o contraste espacial permite uma dialética do mostrar e do esconder que perspassa não só o texto em si, mas também a intenção do autor, que primeiro esconde e depois mostra esse diálogo do leitor com o texto. Além disso, eles são espaço que evoca uma estética das passagens e que é uma via de entre-imagens, são um elemento espacial que convida a espiar e a observar (voyeurismo). Esse olhar metonimicamente acaba por refletir a continuidade dos espaços.
O elemento espacial casa sugere a ideia de fortaleza, de um bastião resguardado do exterior e a salvo dos olhares dos curiosos. No caso do conto o personagem se encontra em um espaço fechado, porém com várias aberturas que permitem contato entre exteriores e interiores. Isso acaba criando um ar de intimidade e de reclusão que caracteriza o espaço doméstico, mas que ao mesmo tempo permite observadores e deixa as costas desguarnecidas a quem penetrar na sala pela porta, criando um “susto” maior no leitor desprevenido. Há um paralelo entre os procedimentos de organização do espaço do personagem como tal pelo autor, na lógica interna do conto, e do personagem como índice metaliterário que provoca no leitor real (empírico) uma reação.
Nesse conto Cortázar retoma o paradigma comum de um espaço externo inseguro e de risco contra o espaço interno seguro e que promove o bem-estar, para logo em seguida rompê-lo com a invasão (do livro e do espaço físico do personagem).
Para finalizar, o ato de ler e de adentrar na fantasia e na ilusão nos rouba a percepção exata do tempo, mas o “fim do romance (a morte virtual do marido) coincide com o do conto (morte virtual do leitor)” (Passos, 1995). Como bem percebeu essa estudiosa, há nesse conto um jogo de espelhos muito bem definido, pois:
vários olhares suscitam, no nível textual, um jogo especular em que o prazer de ver, sem ser visto, recobra o sabor do proibido, temática já presente na paixão inconfessa dos amantes. Quatro olhares espreitam-se circularmente: o do narrador (ao construir suas personagens), o do leitor-personagem (ao visualizar as figuras do romance), o do amante (ao penetrar na sala do marido-rival) e o nosso (na tentativa de abarcar todos os outros). (Passos, 1995)
Logo, nesse cruzamento de olhares, estamos identificados com o leitor-marido e com o leitor na poltrona, pois como eles temos o mesmo objeto de desejo em nossas mãos: o livro. E, tal como eles, somos envolvidos pela ilusão artística. Como última “coincidência” também é o nosso fim como leitores empíricos que o final do conto traz.
Então, ao fim do texto, quase que o leitor empírico se vira nesse instante da invasão, principalmente se também tem à sua frente janelões ao entardecer e se encontra sentado em uma poltrona de veludo verde. Não só o espaço do personagem foi invadido, mas também o nosso, como leitores do conto, limitando mais ainda nossos espaços e trazendo uma certa angústia e ansiedade (sentimentos que trazem o espaço em sua origem etimológica: angústia [6] vem do latim e significa estreitezalimiterestrição e a palavra ansiedade, também de derivação latina, remete a angere que significa apertarestreitar).
Assim, na busca de um leitor cúmplice e partícipe, Cortázar o insere em um angustioso jogo labiríntico de palavras. Ele procura instigar o leitor a que se questione, a que perceba novas realidades e novas possibilidades, que saia da leitura linear e explicativa para se aprofundar em outras realidades próximas a ele, não somente do mundo circundante, mas também de outros espaços como o das relações e do pessoal e íntimo.

NOTAS
Texto originalmente publicado em Letras (2005), atualizado para a presente edição.
1. Também conhecido como Galería de grabados (1956), Escher informa que “como variación del tema tratado en Balcón (…) se realiza aquí una distensión que circunscribe el centro vacío en el sentido del reloj. Abajo a la derecha entramos en una galería con cuadros expuestos en las paredes y sobre unas mesas. Primero nos encontramos con un visitante que lleva las manos a la espalda, y luego, en la esquina inferior izquierda, vemos a un joven que es cuatro veces más grande que el visitante. Su cabeza, por su parte, há sido aumentada con respecto a su mano. Está considerando el último grabado de la serie que cuelga de la pared, y sigue con atención los detalles: el barco, el agua y las casas en el fondo. De allí dirige su mirada hacia la derecha, a lo largo del grupo de casas, cuyo tamaño aumenta. Allí, una mujer está mirando por la ventana en dirección al techo oblicuo que cubre la galería. El joven está mirando todas estas cosas como si fuesen detalles bidimensionales del grabado. Si mira un poco en torno suyo, descubrirá que es parte del grabado” (Escher, 1994).
2. Em minha dissertação faço um estudo sobre o ponto vélico em alguns contos de Final del juego. Cortázar menciona o ponto vélico quando fala do “sentimento do fantástico” que se encontra em Valise de Cronópio
3. O elemento atravessador de espaços é recorrente em Cortázar, já que pode ser uma metáfora do sair do espaço físico, sendo início de uma viagem para o espaço interior.
4. A distração é elemento relevante na vida de Cortázar e um aspecto apontado por ele para se ter um contacto com outras realidades conforme entrevista com Prego (1991) e Bermejo (2002).
5. “O jardim, inclusive como boosco deleitoso (…) sempre serviu de cenário acolhedor e conivente.” SALDANHA (1993).
6. Bollnow também aborda o sentido etimológico de angústia em relação ao espaço (1969).
***
2. Um cronópio apaixonado: as mulheres de Cortazar [1]
Sempre que vou falar sobre Cortázar, gosto de utilizar um primeiro instante para falar sobre a vida e obra do grande cronópio, colocar um cd com ele lendo alguns de seus contos e mostrar alguns dos quase setenta livros que foram publicados. Aqui vou citar algumas de suas paixões. Mulheres que influenciaram seu modo de viver. Como sabem, Cortázar era, quando criança, um menino tímido, asmático e fechado em seu próprio mundo de literatura, música, filatelia e jazz. Mesmo assim se apaixonou por uma vizinha em Banfield, povoado onde morava. Esse amor foi “destruído” pela visita de um primo portenho [2]. Esse foi o primeiro amor e a primeira desilusão amorosa de Cortázar. Mais tarde, adolescente, foi considerado deselegante e desengonçado, por causa de sua alta estatura. Além do mais não tinha barba (o que um implante aos 50 anos resolveu). Mas a partir de seu sucesso como escritor, as mulheres começaram a se interessar cada vez mais por este homem de olhar enigmático, mãos profundas e erre arrastado. Vamos falar aqui das mulheres mais importantes de sua vida, sem contar sua mãe que sempre lhe deu apoio.
Coca – uma relação professor - aluna
Em 1939 Cortázar se mudou para Chivilcoy, para dar disciplinas em um colégio secundário. Sua vida era tranquila, até que seu hermetismo, um amor proibido e platônico e alguns rumores lhe tiraram o sossego. O novo professor era centro de atenção dos olhares femininos, e tanto as professoras como suas alunas se aproximavam dele com óbvio interesse. Entre as admiradoras estava uma estudante: Coca Martín. Durante as aulas, os olhares se cruzavam cada vez mais, e Cortázar escreveu uma poesia que lhe fez chegar secretamente, sem assinar. O tempo passou e nenhum dos dois fez alusão ao fato até que, em um festival de cinema, os dois sentaram juntos por coincidência, e ali, na penumbra da sala de projeção, Cortázar juntou coragem e recitou parte do poema.
A relação entre eles se estreitou, mas como era uma relação “proibida” costumavam encontrar-se e conversar na praça Espanha. Uma vez que os costumes da época (e da cidadezinha) eram restritos, é possível que Cortázar nunca tenha beijado a moça. Dessa paixão nasceu um romance que nunca veio a público, pois foi queimado em um fogão à lenha parisiense, anos depois: Solilóquio.
 A relação com Coca Martín foi demasiada para a sociedade de Chilvicoy, e rumores aumentaram os preconceitos contra Cortázar. Logo em seguida o escritor voltou para Buenos Aires.

Aurora  o primeiro namoro
Já morando em Buenos Aires conversava um dia sobre jazz com uma amiga, na Confeitaria Richmond, quando uma ex-colega de faculdade da amiga se aproximou: era Aurora Bernárdez, graduada em Letras. Cortázar logo começou a falar de Keats e Flaubert. Aurora, erudita, acompanhou facilmente a conversa, que girou em torno da literatura. A admiração mútua e a atração física, fizeram os encontros repetirem-se cada vez mais, se transformando em namoro formal.
Apesar de se darem bem afetivamente e intelectualmente, o casal tinha uma imagem estranha: ela, pequena, sorridente, graciosa em seus 1m e 60cm. Ele, tenso, um gigante deselegante, pensativo e sério. Passavam horas lendo, conversando e escutando concertos de música clássica. Ou então passeavam de mãos dadas ou sentavam nas mesas dos cafés e conversavam.

Edith – A Maga – um encontro “casual”
Cortázar estava dando seus primeiros passos seguros como escritor, e amadurecia a ideia de partir para a Europa. Em 1950, embarcou na terceira classe de um navio e foi para Paris. Como a viagem era longa, ele passava horas tocando o piano no salão. Alguns passageiros ficavam escutando e entre seus espectadores Cortázar reparou em Edith Aarón, uma alemã de vinte e três anos. Só cruzaram seus olhares.
Semanas mais tarde, já em Paris, Cortázar encontrou Edith bisbilhotando em uma livraria do Boulevard Saint Germain. O escritor fez um leve cumprimento e ela respondeu com um sorriso, seguindo seu caminho sob a neve. A casualidade, no entanto, fez com que dias depois voltassem a se encontrar na fila de um cinema. Desta vez a saudação foi mais franca. Sorriram abertamente e entraram juntos para ver o filme. Ao sair, caminharam umas quadras e se despediram, sem saber de seus endereços e nem combinar novo encontro.
Uma semana mais tarde, quando o inverno começava a enfraquecer, se cruzaram nos Jardins de Luxemburgo. Falaram de literatura e de Buenos Aires. Edith sentiu frio e ele lhe emprestou um suéter. Entraram em um café e ficaram horas conversando. O escritor, que não deixava de pensar em tantas coincidências, lhe presenteou um poema. Sentia-se à vontade a seu lado e viu que seu suéter azul lhe assentava muito bem.
Saíram do café sabendo que voltariam a encontrar-se. Em poucos dias compartilharam um passeio por Paris, assistiram a um concerto de Bach e viram um eclipse lunar na praça da Igreja de Notre Dame. Um dia, sentados à margem do Sena, Cortázar fez um barquinho de papel com um guardanapo e o pôs na água. “Volto para Buenos Aires”, lhe disse. Ela riu e prometeram trocar cartas.

De novo Aurora – a primeira esposa e a companheira de uma vida inteira.
Cortázar voltou à Buenos Aires, mas pretendia retornar a Paris. Apresentou ao governo francês um projeto de literatura e ganhou uma bolsa para dez meses e um alojamento em um pavilhão argentino da Cidade Universitária. Pretendia ficar em Paris durante a bolsa, mas intuía que sua viagem seria para sempre. Por isso, demitiu-se, vendeu os seus discos de jazz, se despediu dos amigos e pediu a Aurora que o acompanhasse. Concordaram que ela viajaria alguns meses depois.
Teve tempo para escrever para Edith: “Não sei se lembra do longo, magro, feio e tedioso companheiro com o qual você aceitou passear muitas vezes por Paris. (...) Eu sou outra vez esse, o homem que lhe disse, ao despedir-se de você diante do Flore, que voltaria a Paris em dois anos. Vou voltar antes, estarei aí em novembro. (...) Penso no prazer de voltar a encontrá-la, e ao mesmo tempo tenho um pouco de medo de que você esteja muito mudada, (...) de que não a divirta a possibilidade de ver-me. (...) Por isso lhe peço desde já, e se lhe peço por escrito é porque me é mais fácil, que se você está em uma ordem de vida satisfatória, se não necessita desse pedaço de passado que sou, que me diga sem rodeios. (...) Seria muito pior dissimular um aborrecimento. (...) gostaria que continue sendo brusca, complicada, irônica, entusiasta e que algum dia eu possa emprestar-lhe outro pulôver”.
A bolsa recebida cobria escassamente suas necessidades e as de sua família, assim, trabalhou como empacotador, em uma loja onde Edith trabalhava. Tempos depois ele comprou uma moto Vespa, e conseguiu emprego em uma distribuidora de livros. Sentia-se solitário em Paris e a chegada de Aurora lhe deu o apoio afetivo de que necessitava. O casal se mudou para o Bairro Latino, onde alugaram uma pequena casa. Os trabalhos literários que Aurora arrumou, e o salário de Julio por seu trabalho de distribuidor, davam para pagar o aluguel e os gastos básicos.
Um dia, Julio sofreu um acidente, quase atropelando uma velhinha que atravessou com o sinal fechado. Seu corpo se machucou mais que a vespa e ficou um tempo no hospital. Os três meses de repouso consolidaram a relação do casal, ainda que Cortázar não perdesse a oportunidade para “emprestar pulôveres” a Edith ou outras mulheres. Em 22 de agosto de 1953, Aurora e Julio se casaram.
Anos depois, Cortázar foi convidado a fazer parte do júri da Casa das Américas, em Cuba. Apesar de a experiência cubana ter sido fascinante para Cortázar, sua esposa Aurora, ao contrário, não gostou.
Em 1964, aos cinquenta anos, um tratamento hormonal fez crescer sua barba. Esse tratamento gerou uma mudança em sua conduta, pois tomou consciência de sua virilidade. Seu re-descoberto apetite sexual se valeu de sua grande popularidade para chamar a admiração das mulheres que cruzavam sua vida. Agora, além de suas histórias e sua sólida erudição, tinha a seu favor a popularidade das causas sociais e sua barba que começava a obscurecer seu rosto.
 Esta situação colaborou na deterioração da união com Aurora, junto às questões ideológicas que afastaram Cortázar e a esposa. A mulher, herdeira do intelectualismo puro, via com desagrado o crescente compromisso político do escritor. Nesse sentido, as viagens para Cuba não fizeram mais que aprofundar as diferenças.
Cortázar conhecia a secretária da Gallimard, Ugné Karvelis, havia anos, mas somente depois a fugaz relação em Havana se transformou em amor apaixonado. Este fato precipitou a separação do casal Julio/Aurora. Ela regressou a Paris, e pouco depois, à Argentina. Julio adotou Saignon como seu refúgio. Do amor de anos principiou uma amizade que o uniria à Aurora até a sua morte.

Leda AstorgaUgné – um impulso na vida política e editorial
Ugné Karvelis, uma lituana de vinte e oito anos, tinha o fervor militante que faltava à Aurora. Desde quando viu Cortázar ficou curiosa e encantada com aquele homem sério, mas de rosto infantil. Durante um tempo, para Cortázar, ela seria apenas a bela e tímida empregada da Gallimard. Uma vez, em 1967, Ugné foi convidada para ir à Cuba e sabendo que Cortázar estava na ilha, simulou um encontro casual na recepção do hotel. Ao ver Cortázar, que descia de seu quarto, se aproximou com seu exemplar de O Jogo da Amarelinha na mão e ficou frente a frente com ele. Cortázar, surpreendido pela presença, sorriu e a convidou para tomar um mojito, bebida típica cubana. Sentada na mesa, sob o sol de Havana, Ugné descobriu como esse homem que em Paris perambulava cinza e austero, conversava feliz e aberto, dividindo o fervor socialista com ela. “Eu conhecia sua cara de sombra – lhe disse Ugné quando omojito começou a exercer sua magia e a mesa era testemunho de suas mãos entrelaçadas -. Agora sei também que tem uma cara de sol”..
Paralelo ao surgimento de um batalhão de mulheres dispostas a seduzir ao grande cronópio, a amizade com Edith Aaron atravessava momentos difíceis. O laço que os unia desde o primeiro encontro se aprofundou durante os anos. Edith, que perdeu as últimas economias herdadas, propôs traduzir alguns textos de Cortázar para o alemão. O escritor aceitou, mas as primeiras provas das traduções mostraram um desconhecimento do idioma. Com pesar, Cortázar teve que retirá-la do trabalho e daí em diante, a relação entre ele e Edith se esfriaria.
Logo após a separação de Aurora, Cortázar oficializou sua relação com Ugné. Apesar de nunca terem se casado e viverem em apartamentos separados, a união enriqueceu a ambos. Os contatos editoriais de Ugné abriram novas perspectivas à obra de Cortázar e a postura ideológica da mulher, deu um impulso para a aproximação com a América Latina.
Com cinquenta e sete anos de idade, Cortázar cumpriu seu sonho do “dragão” próprio. Comprou uma kombi Volkswagen vermelha, a qual batizou Fafner, nome do dragão da saga dos Nibelungos. E com ela viajou. “A viagem inaugural foi Paris-Viena-Paris. Fui sozinho (para grande cólera de Ugné, mas eu queria um ‘mano a mano’ com meu dragão, sem contar uma ou duas dragonitas que tenho pelo lado da Áustria e que fazia tempo não visitava). Dormi nos bosques, (...) aprendi a fazer correr e galopar à Fafner, com máxima velocidade (que não é muita, mas um dragão não é um cavalo árabe), e voltei para Paris muito contente”.
Instalou-se então com Ugné em Saignon, para passar o verão e terminar alguns textos. Ainda que no princípio Ugné deu um forte impulso editorial para sua obra e um apoio a seu compromisso político, a união havia se deteriorado nos últimos anos. Cortázar escreve a Retamar e faz uma breve menção à separação: “tenho a esperança de guardar com ela uma amizade e uma colaboração invariáveis”. A companheira havia adotado ao uísque como seu amante fiel, uma vez que Cortázar não era tão fiel assim. Estes deslizes e sua forte personalidade começaram a afetar uma relação que sempre havia tido seus atritos. A rotina de longas temporadas juntos em Saignon ou em Paris, propiciavam brigas cada vez mais frequentes.
Além disso, a popularidade de Cortázar lhe dava novas amizades, sobretudo femininas, dispostas a aceitar suéteres, bebidas ou cronópios de presente. Em agosto de 1978 Cortázar escreve uma carta para o amigo Retamar dizendo que ele e Ugné haviam decidido se separar: “sei que te doerá saber disso, e de minha parte tenho a esperança de guardar com ela uma amizade e uma colaboração invariáveis”. Nunca casaram oficialmente, mas Cortázar foi generoso: deu-lhe a casa de Saignon e uma linha em seu testamento. Enquanto enchia caixas preparando a mudança, outro nome de mulher dava voltas em sua cabeça.

Carol – o grande e último amor.
Em princípios de 1977, Cortázar viajou ao Canadá para dar conferências sobre literatura latino-americana na universidade de Montreal. Um dia um dos professores se aproximou e o convidou para jantar. Quando entrou no chalé, a primeira coisa que notou foi um belo rosto juvenil, de cabelo curto e bonitos olhos claros. O anfitrião se apressou a apresentá-los: “Carol Dunlop, minha ex-mulher”. Cortázar a olhou e conteve a respiração. Ela estendeu a mão que ele tomou timidamente. Ao lado de Carol estava o pequeno Stéphan: “Bonsoir monsieur”, disse sem separar-se de sua mãe, que olhava para cima e não tirava os olhos daquele gigante barbudo e emudecido.
Na mesa, Cortázar soube que Carol havia nascido nos Estados Unidos, mas havia se mudado para o Canadá depois de ativa participação contra a guerra do Vietnã. Cortázar sorriu com admiração e lhe perguntou em francês o que achava da revolução cubana. Outras pessoas estavam ali, mas ninguém mais existiu para ele naquele jantar. Carol comentou que também escrevia e o final da noite os encontrou lendo um conto dela: “Espelhos e reflexos”.
De volta a Paris, enquanto Ugné dormia a seu lado, tomou uma folha de papel e escreveu: “Querida Carol: Talvez esta carta lhe surpreenda, mas creio que contém uma ideia interessante e queria que me dissesse com toda franqueza seu ponto de vista (perdão pelo meu espantoso francês, mas sei que não conhece o espanhol) (...) Acabo de reler seu conto e me ocorreu a ideia de que talvez poderíamos tentar juntos, você e eu, algo como um ‘trabalho paralelo’ (...) Tenho a impressão de que há em nossas buscas semelhanças quando menos perturbadoras, e me pergunto se uma exploração em comum desse território – em que cada um conservaria, desde logo, uma liberdade total de criação e de língua original – não daria frutos inesperados”.
Ao finalizar a carta, e logo convidá-la a viajar para a França para começar o trabalho, agregou: “Tudo isso tem algo de ‘sonho’, eu sei, mas sei que certos sonhos possuem a tendência de realizar-se se os empurra um pouco”.
Meses depois, Carol deixou Stéphan aos cuidados de seu ex-marido e viajou para Paris. Do aeroporto foi diretamente para o apartamento de Julio. Aos sessenta e cinco anos, e em companhia de uma mulher trinta e dois anos mais nova, começou para ele uma nova vida. Abandonou para sempre suas aventuras extra-conjugais e se entregou a essa união.
Em 1981 Cortázar recebe a cidadania francesa e com a tranquilidade da situação legal, Cortázar e Carol viajaram para passar o verão em Aix-en-Provençe. Todas as manhãs davam um passeio pelo bosque onde recolhiam frutos silvestres. Depois, a leitura sob o sol na varanda e mais tarde responder algumas das dezenas de cartas que cada semana se acumulavam sobre a mesa. Apenas uma leve angina molestava a Cortázar que, hipocondríaco, tomava muitas aspirinas.
Certa madrugada, Carol acordou e não o encontrou na cama. Correu pela casa buscando-o, até que o viu: Julio estava desmaiado, em um mar de sangue, os olhos fechados e a barba arroxeada. Em poucos minutos, foi levado ao hospital:
Apenas Carol e os médicos sabiam que era mais que uma simples hemorragia produzida por um consumo excessivo de aspirinas. O diagnóstico do médico foi definitivo: Cortázar sofria de leucemia mielóide crônica. Começa assim, sem o saber, o lento caminho até o fim. Ela nunca falou a ele de sua doença. De volta a Paris, em dezembro de 1981 acontece o casamento Dunlop-Cortázar. “Depois de quase quatro anos vivendo juntos e ter passado por todas as provas que isso supõe em muitos planos, estamos seguros de nosso carinho e eu me sinto muito feliz de normalizar uma situação que algum dia será útil para o destino de Carol”, escreve Cortázar ao amigo.
Apesar de ter quase sessenta e oito anos, o espírito infantil de Cortázar era constante. Brincava de armar móbiles em sua oficina e às vezes se disfarçava com os caninos vampirescos e as unhas pintadas de negro. Então corria atrás de Carol pela casa e não se contentava até que a tinha entre seus braços e podia morder-lhe o pescoço. Outro jogo aconteceu em 1982 quando organizaram uma viagem cuja única finalidade era escrever um livro sobre a experiência. Estabelecendo uma série de regras, se propuseram a embarcar em uma kombi e fazer a viagem Paris-Marselha através da Autopista do Sul, parando cada dia em duas estações de serviço, do total de setenta. Deteriam-se para escrever, desenhar, ler ou descansar, procurando encontrar nas estações de serviço aquilo que costuma passar despercebido para o turista comum.
As regras do jogo consistiam em que em nenhum momento poderiam sair da autopista, de modo que alguns amigos lhes levariam provisões às estações de serviço. A viagem durou trinta e três dias e chegaram a Marselha cansados, mas satisfeitos. Nenhum dos dois sabia que o que havia começado como um jogo, teria tempos depois o significado de uma despedida.
Apenas finalizada a experiência da viagem, Carol e Cortázar foram à Nicarágua para retomar a ajuda a esse país. Iriam se instalar por dois meses em Manágua, escrevendo artigos e depoimentos que alertassem a comunidade internacional para a situação nicaraguense. O casal vivia em uma casa, junto de Stéphan. O filho de Carol tinha então treze anos e começava a comungar com as ideias do socialismo. Umas semanas antes de completar os dois meses, Carol começou a sentir uma forte dor nos ossos que os obrigaram a trocar de planos. Stéphan retornou ao Canadá e o casal viajou para Paris. No hospital descobriram que um vírus estava afetando a produção de glóbulos brancos e plaquetas. Carol foi internada e iniciou-se um longo tratamento que se estendeu por 70 dias.
Julio entristecia a cada dia, pois o tempo passava e não se via melhora. Os médicos propuseram um transplante de medula. Os amigos de Cortázar, Aurora e ele mesmo se ofereceram como doadores, mas não havia compatibilidade. Apesar das esperanças que mantiveram, em 2 de novembro de 1982, Carol “se me foi como um fiozinho entre os dedos. (...) Se foi docemente, como ela era, e eu estive ao seu lado até o fim, os dois sozinhos na sala do hospital onde passou dois meses, onde tudo resultou inútil. Até o final esteve segura de que melhoraria (...) a acompanhei como se nada tivesse mudado, e nas últimas horas consegui que ninguém entrasse para molestá-la e fiquei ao seu lado, cuidando, até que o último calmante que lhe haviam dado foi adormecendo-a pouco a pouco”.
O amigo Tomasello construiu a tumba no cemitério de Montparnasse, Silva desenhou a escultura que a adorna: um círculo sobre outro, flores ou talvez cronópios subindo uma escada. Junto à tumba chorava um homem doente que nem o sabia ser, mas que, em sua solidão e com a dor do amor perdido, intuía que o fim estava próximo.

Aurora – outra vez a companheira
Aurora e os amigos de Cortázar o visitavam frequentemente para conversar sobre jazz, boxe, literatura, e tudo que o pudesse animar. Por vezes lhe narravam algum episódio fantástico ou diziam que haviam visto um vampiro; porém de nada adiantava. Cortázar redigiu um testamento em que todos seus bens e a metade dos direitos de autor eram cedidos a Aurora Bernárdez.
Até fins de 1983 a saúde de Cortázar ia piorando. Ao avanço da leucemia se juntavam outras complicações. Fez um tratamento intensivo e ficou internado durante dias no hospital, mas de nada adiantou. Aurora o acompanhou durante o tratamento e depois se instalou em seu apartamento, para preparar sua alimentação e lhe dar os medicamentos. Cortázar permanecia triste, mas a companhia de Aurora era de grande ajuda e compartilhavam cada momento juntos, desfrutando de uma amizade que havia sobrevivido.
  Cortázar passava horas no cemitério, e levava flores amarelas de que tanto gostava Carol e se sentava junto a ela. Mas em 12 de fevereiro de 1984, no hospital, Cortázar murmurou um último desejo. Voltou a cabeça em direção à janela e fechou os olhos. Junto à ele estavam Aurora e Tomasello; no ar, tal como havia pedido, flutuava Mozart. Foi sepultado dois dias depois, no cemitério de Montparnasse. Aurora jogou rosas vermelhas sobre a tumba. Ali, debaixo de uma mesma lápide, descansam Carol Dunlop e Julio Florêncio Cortázar, enormíssimo cronópio.
Essas foram as mulheres de Cortázar.

NOTAS
1. Texto baseado em dados de alguns livros de biografia, dentre eles:
MAQUEÍRA, E. Cortázar, de cronopio y compromisos. Buenos Aires, Longselle, 2002.
ROO, J. P. Cortázar inédito - un tal Julio Denis. Buenos Aires: Imagen Art, 1996.
CÓCARO, N. et al. El joven Cortázar. Buenos Aires: Círculo gráfico publicitario, 1993.
Originalmente publicado em Cronópios (2006), atualizado para a presente edição.
2. Essa história pode ser conhecida de forma ficcional através do conto Los Venenos.
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3. Julio Cortazar na Life
Em sete de abril de 1969, a revista life (em espanhol) conseguiu uma “entrevista” com o autor Julio Cortázar (1914-1984). Já na abertura da revista, ao lado do sumário [1], há uma nota da direção em que o diretor geral Alberto Cellario explica que life considera Cortázar um grande escritor de língua espanhola, cujo ponto de vista político a revista não comunga. E que apesar de Julio Cortázar considerar life um adversário maquiavélico, a revista não poderia deixar de repetir e publicar suas ideias.
Essa “explicação” dada já na nota da direção é nada menos que um reflexo da contundente escrita de Cortázar que se inicia na pág. 45. A abertura do artigo está nas páginas 43 e 44, com fotos do escritor que praticamente tomam as páginas e com frases sobrepostas. Na primeira ele está de costas, andando, e a frase “Un gran escritor y su soledad Julio Cortázar” aparece. E na segunda, ele está entrando em um carro olhando diretamente para o fotógrafo, “Los hombres valen para mi más que los sistemas”.
Essa entrevista foi realizada em Paris, país no qual ele se auto-exilou no ano de 1951 para escapar do peronismo [2]. Uma conterrânea sua, Rita Guibert, repórter da life que já havia entrevistado Borges em 1968, o “perseguiu” por tempos, até que por fim Cortázar aceitou fazer a entrevista (mas com algumas “exigências”).
Já no início o escritor informa aos leitores que:
Lo que sigue se basa en una serie de preguntas que Rita Guibert me formuló por escrito en nombre de LIFE, pero antes de contestarlas me parece indispensable dejar en claro algunas circunstancias vinculadas con estas páginas. La moral y la práctica quieren que un escritor exprese habitualmente sus ideas en publicaciones que pertenecen a su propio campo ideológico e incluso intelectual; no es esto lo que ocurre aquí, y tanto LIFE como yo lo sabemos y lo aceptamos. Desde nuestro primer contacto quedó entendido que mi consentimiento no solamente no significaba una “colaboración” para LIFE, sino que para mí representaba precisamente lo contrario: una incursión en territorio adversario. LIFE aceptó este punto de vista, y me dio las garantias necesarias de que mis palabras serían reproducidas textualmente. Soy, pues, único responsable de ellas; nadie las ha adaptado a exigencias periodísticas, y es justicia decirlo desde ahora [3]. (life, p. 45)
Quando Cortázar inicia sua entrevista deixando claro seu ponto de vista político, e que as palavras que o leitor lerá são de sua única responsabilidade, abre duas circunstâncias: se permite uma liberdade de expressão no qual não será “censurado” e redime a revista de possíveis colocações não aceitas pela sociedade. Ao escrever que está incursionando em território “inimigo” Cortázar deixa clara sua ideia do “imperialismo” estadunidense, além de indicar que tem consciência de que as palavras podem ser transformadas pelo poder da mídia a seu bel prazer. Era justamente por tudo isso que o escritor mantinha uma desconfiança na mídia que o fazia de se abster de ceder entrevistas a periódicos. Cortázar conhecia muito bem o poder das palavras, pois a linguagem era um dos elementos de transformação utilizados por ele.
Continuando a entrevista o escritor afirma que a sua desconfiança inicial e a demanda por garantias surpreenderam os responsáveis de life tanto quanto surpreenderão muitos leitores, e sobre isso ele explica que:
no solamente desconfío de las publicaciones norteamericanas del tipo de LIFE, en cualquier idioma en que aparezcan y muy especialmente en español, sino que tengo el convencimiento de que todas ellas, por más democráticas y avanzadas que pretendan ser, han servido, sirven y servirán la causa del imperialismo norteamericano, que a su vez sirve por todos os medios la causa del capitalismo [4].
Leda AstorgaE nesse caminho Cortázar critica o capitalismo norte-americano e a sua colonização cultural na América Latina, que utiliza intelectuais e escritores que tem boa vontade, mas que são seguidores ingênuos em um caminho equivocado, pois são usados pela mão do capitalismo. Para afirmar tais acusações Cortázar se mostra um crítico consciente utilizando-se de exemplos da própria Life. Cita o número de 11 de março de 1968, cuja capa mostra soldados norte-vietnamitas ilustrando uma vontade de informação objetiva da revista, e que em seu interior mostra Jorge Luis Borges falando de sua vida e obra, mas na contracapa aparece a verdadeira cara de life: um anúncio de Coca-Cola. Continua os exemplos com o número 17 de junho do mesmo ano: Ho Chi Minh na capa e os cigarros Chesterfield na contracapa. Em seguida Cortázar afirma que: “Simbólicamente, psicoanalíticamente, capitalisticamente, life entrega las claves: la tapa es la máscara, la contratapa el verdadero rostro mirando hacia América Latina [5]”. 
E, para o “leitor ingênuo” que pensa que não é bem assim, senão a revista não estaria publicando esse artigo de Cortázar, ele nos lembra da dialética do diabo (como bem mostraram Christopher Marlowe e Goethe). Pois se a revista é fiel aos princípios aparentes, está obrigada a publicar o texto e Cortázar se vê obrigado a aproveitar essa obrigação. Sim, o autoritarismo se disfarça, engana e ludibria, é o famoso caso do lobo em pele de ovelha. O escritor ainda afirma que a cia já pagou revistas que falavam muito mal da própria cia e que a Igreja Católica tem um setor “avançado” que arremete contra encíclicas e concílios. Afinal, “la tradición del bufón del rey no se ha perdido, porque es útil y necesaria para los reyes de todos los tiempos, aunque los de ahora huelan a petróleo y hablen con acento tejano”. [6] É nesse ponto que Cortázar, sempre envolvendo o leitor como se estivesse conversando diretamente com ele, fala: “algún otro lector igualmente sobresaltado se estará encogiendo de hombros al darse-cuenta-de-la-verdad: Julio Cortázar es comunista, y por consiguiente ve enemigos escondidos en cada botella de la pausa que refresca”. [7] E, abrindo esse parágrafo, ele explica seu ponto de vista político – revelando consciência em suas convicções – e afirma que sua ideia de socialismo latino-americano é crítica. Ele se considera um humanista socialista, pois não aceita a alienação que o capitalismo necessita e nem aceita a obediência aos aparatos burocráticos. Cortázar preza a liberdade e a dignidade humanas, e fala que tanto o sistema capitalista quanto o comunismo esclerosado e dogmático são uma ameaça para o autêntico socialismo. O autor continua seu artigo explicando pontos de sua vida: como se envolveu com Cuba, porquê admira Fidel e Che, e mostra que seu desejo é na verdade resgatar a América Latina do colonialismo e do subdesenvolvimento. E assim continua a entrevista até que o escritor se põe a falar de suas obras (que eram a maioria das perguntas que Rita Guibert entregou a ele).
Esse preâmbulo, em que utilizei o artigo de life, é apenas para situar o leitor na contundência política de Cortázar. Na sequência procurarei demonstrar a revolução que o autor provoca na humanidade com seus escritos.

Cortázar revolucionário
Como vimos no trecho anterior, Cortázar na life, o escritor e humanista Julio Cortázar nunca pegou em armas, e jamais pegaria, pois acreditava na força das palavras. Acreditava na força da ficção que, no fundo, nada mais é do que o reflexo da não-ficção. Há uma fala de Cortázar que indica esse pensamento: “Cada uno tiene sus ametralladoras específicas. La mía, por el momento, es la literatura” [8].
Quem conhece a obra de Cortázar sabe que uma de suas intenções é o envolvimento do leitor. Através de sua escrita contundente, apesar de lábil (ou talvez por isso mesmo), ele consegue tocar o leitor. Cortázar quer “sacudir” o leitor, quer que o leitor seja consciente e ativo, e não um passivo que engole tudo. Suas técnicas para chegar a este objetivo são várias, mas uma delas consiste em quebrar a linearidade do espaço e do tempo, além de um uso de linguagem diferente, justamente para “acordar” o leitor. Ou seja, ele promove uma subversão da ordem para que o leitor se sinta incomodado, para que isso cause no leitor um estranhamento capaz de fazê-lo refletir não somente sobre o que está escrito, mas também sobre o que está ao seu redor.
O que Cortázar quer é a revolução sim, mas uma revolução com livros, com uma mudança de visão em cada pessoa. Já que a sociedade é a soma de indivíduos, será com indivíduos mais conscientes, questionadores e leitores que a sociedade terá mais organização, participação e conscientização. Essa mutação no indivíduo se percebe de forma mais clara nos ensaios do escritor, pois suas obras por vezes não são compreendidas pelos leitores passivos. Por exemplo, ao falar do lector-hembra (leitor fêmea) [9] ou da abertura da porta e o despertar em um sonho que está dentro de outro sonho percebe-se mais facilmente a intenção cortazariana.
Para criar uma revolução Cortázar também utilizou a própria linguagem como arma, pois procurava quebrar a autoritária rigidez gramatical e ortográfica, imposta pela Real Academia Espanhola. Ele adorava fazer experiências com as palavras, desde o uso de palíndromos e anagramas até a criação de outra “língua” como o glíglico [10]Afinal, como ele mesmo dizia: “Hay que luchar contra el idioma para que no imponga sus fórmulas y sus clichés, las frases hechas, todo lo que caracteriza tan bien a un mal escritor” [11]. Sim, até mesmo o autoritarismo da Academia ele procurava transgredir. [12]
A luta contra o autoritarismo também está presente na biografia do escritor, como se percebe no período em que viveu em Buenos Aires, durante o pré-peronismo. Cortázar se encerrou durante cinco dias, com mais cinco professores e cinquenta alunos, dentro da Universidade de Cuyo (na cidade de Mendonza), [13] embaixo de um constante lançamento de bombas de gás pela polícia. A resistência terminou com a detenção do grupo por alguns dias. Depois da vitória de Perón em 1946 e com as pressões políticas que isso implicava – por sua participação na resistência – ele renunciou ao cargo de professor e retornou a Buenos Aires, onde começou a trabalhar como gerente na Câmara Argentina do Livro.
Não por acaso, foi justamente em 1946 que publicou o conto “Casa Tomada” nos Anales de Buenos Aires, revista dirigida por J. L. Borges. Muitos críticos associam os ruídos da “casa tomada” ao peronismo, e a expulsão da casa é associada à saída de muitos argentinos de sua pátria (ou o “sumiço” de muitos argentinos). Também há quem associe o ruído aos auto-falantes que gritavam dos carros de propaganda peronistas e que penetravam nas casas com suas mensagens políticas.
Seja como for, há um poemeto de Cortázar que ilustra bem o seu sentimento pelo general (seja quem for esse general):
A un general

Región de manos sucias de pinceles sin pelo
de niños boca debajo de cepillos de dientes

Zona donde la rata se ennoblece
y hay banderas innúmeras y cantan himnos
y alguien te prende, hijo de puta,
una medalla sobre el pecho

Y te pudres lo mismo.
Para finalizar, abordo um pouco mais da “consciência política” de Cortázar em seus escritos ou fora deles. Cortázar, na minha opinião, foi um dos melhores revolucionários que existiram, pois fez de sua escrita uma possibilidade de questionamento e mudança. Como já dito, sua arma foi sua máquina de escrever.
No seu livro de “ensaios” Ultimo Round (1969) os acontecimentos políticos do ano anterior se veem refletidos em alguns poemas e textos anônimos recolhidos durante o maio francês. Já em 1973 aparece O Livro de Manuel, romance nascido de um “cotidiano sentimento de horror, de vergonha, de humilhação pessoal como latino-americano frente ao panorama do colonialismo e o gorilismo entronado em tantos de nossos países”. Nele, narra a história de um grupo de exilados latino-americanos em Paris que organiza o sequestro de um personagem anti-terrorista, com o objetivo de trocá-lo por presos políticos. No prólogo desse livro Cortázar escreve: “Mais do que nunca acredito que a luta em prol do socialismo latino-americano deve enfrentar o horror cotidiano com a única atitude que um dia lhe dará a vitória: cuidando precisamente, vigilantemente, a capacidade de viver tal como a queremos para esse futuro, com todo o que supõem de amor, de jogo e de alegria”. Pouco tempo depois da publicação de O Livro de Manuel, Cortázar e Ugné fizeram uma viagem pela América do Sul que teria por destino final a Argentina. De passagem pelo Chile comprovaram que em Santiago as coisas não estavam muito bem. O presidente Allende e vários amigos os receberam com generosidade e afeto, mas lhes transmitiram a fragilidade da situação pela perseguição do governo norte-americano. Por este livro Cortázar ganha o Prêmio Médicis na França e doa todo o dinheiro do prêmio (cerca de 950 dólares) para a resistência chilena contra a Junta Militar de Augusto Pinochet e para familiares dos presos políticos argentinos.
Em 1973, em um ato na Argentina, Cortázar chamou a todos de “companheiros e companheiras” e informou sobre a doação dos direitos de seu livro para a Comissão de Familiares de Presos Políticos e Grêmios e para a Comissão de Presos Peronistas. Uma senhora então gritou: “Os presos necessitam de ajuda política, não econômica!” Um burburinho ocorreu e Quijano solicitou que não se fizessem provocações. Cortázar o corrigiu: “Não é uma provocação. É um mal-entendido. Não sou especialista em política. Só escolhi uma militância ideológica”.
Já na França, Cortázar publicou, junto a outros autores, “Chili, le dossier noir” (1974), [14] onde se documenta e denuncia a violação dos direitos humanos por parte de uma Junta militar. Depois participou da organização do Primeiro Encontro Cultural Antifascista, um congresso que Allende e Neruda haviam planejado realizar no Chile.
“Tenho passado meses difíceis – escreveu a um amigo cubano – com uma enormidade de trabalho resultantes de minha longa viagem pela América Latina, ao que se somou a tragédia do Chile e a necessidade de fazer todo o possível para combater esse estado de coisas e prestar ajuda aos refugiados que chegam à França e a outros países da Europa. Já imaginas que nada disso é fácil, mas com tudo se vão conseguindo algumas coisas. Como sempre, o mais terrível é a luta contra o esquecimento; a gente se cansa até das piores tragédias e passa a outros temas”.
Em meados de 1974, a preocupação de Cortázar pela situação latino-americana se completou em sua participação no Tribunal Russel. Chile, Brasil, Bolívia, Uruguai e Paraguai estavam imersos em regimes ditatoriais, em que a “ameaça do comunismo” havia provocado nos governos uma reação de repressão e violação dos direitos humanos. Com a presença de Cortázar, Garcia Márquez e outros intelectuais, o Tribunal Russel iniciou suas atividades em Roma; ali, numerosas testemunhas narraram as experiências de torturas que haviam sofrido em seus países. Além de recolher testemunhos sobre a violação aos direitos humanos na América Latina, o Tribunal publicava as atas onde figuravam esses relatos, com o propósito de que a opinião pública de todo o mundo estivesse ciente da situação.
Cortázar não ia para Buenos Aires e dizia: “Inútil agregar que, depois de meu trabalho político, não serei eu quem vá a Buenos Aires no momento; como dizia um espanhol, não é que tenha medo das balas, mas sim da velocidade com que vêm”.
Em janeiro de 1975, viajou a Bruxelas para uma nova reunião do Tribunal Russel e então recolheram testemunhos sobre as violações dos direitos humanos no Chile. Um mês mais tarde, Cortázar foi ao México para participar do Tribunal de Helsinki, onde, junto a Gabriel Garcia Márquez e outros intelectuais, condenou à junta militar chilena. No México, mais especificamente no Hotel Prado, concedeu uma entrevista para a escritora Elena Poniatowska, para a revista Plural. Em um fragmento dela, ele diz: “O que acredito e busquei dizer no Livro de Manuel, é que meu sentimento de uma revolução socialista, como a entendo para a América Latina, comporta um duplo processo não consecutivo, mas simultâneo. Há quem pense que, de imediato, tem-se que fazer a revolução – ou seja, acabar com o imperialismo ianque, os gorilas, os militares; tomar o poder e implantar o socialismo no país – e já em seguida haverá tempo para iniciar os planos de cultura, de aperfeiçoamento humano. Desconfio. Acredito que se no ânimo desses revolucionários não existe o desejo de que simultaneamente, se peça a cada indivíduo que dê o melhor de si mesmo, que se busque a si mesmo, se explore, faça sua auto-crítica, que não vá à revolução cheio de preconceitos, mas que esta seja uma maneira de desvestir-se de roupas velhas, essa revolução, fracassará!... Há que acabar com nossos inimigos, mas tem que acabar também com os inimigos internos que cada um leva. Veja o que acontece com uma revolução socialista. Depois de uma tarefa infinita, do sofrimento monstruoso de pessoas heróicas que chegam a matar, se chega ao poder e simplesmente porque quatro ou cinco ou seis dirigentes não tem feito sua auto-crítica, se instala no poder, por exemplo, um puritanismo dos costumes, digamos desde o ponto sexual, quase vitoriano. Isso não aceito porque me parece uma revolução fracassada. O homem continua sendo um prisioneiro de seus tabus, suas inibições, suas impossibilidades. Para que diabos lhe serve o socialismo? Para nada”.
Esta é uma questão que considero vital no olhar crítico-humanista de Cortázar: A revolução interior lhe era tão ou mais importante quanto a revolução exterior e política. Enquanto isso, em Buenos Aires, sua mãe doente o solicitava. Mas não era a única que queria sua presença. A extrema direita já havia advertido que tinha pronta uma bala para quando Cortázar pusesse um pé na Argentina. Diante desse panorama, em abril de 1975, dona Maria Hermínia viajou ao Brasil para encontrar-se com seu filho e seu enorme abraço de menino quase velho e magro. Em uma daquelas noites paulistas, quatro paramilitares argentinos entraram no hotel, passaram pela recepção com as armas ocultas sobre os sobretudos, subiram até o último andar e golpearam a porta do quarto 215. Ninguém respondeu. O mais velho do grupo preparou sua arma e se colocou de um lado. Voltaram a golpear e outra vez o silêncio. Então um dos invasores forçou a porta e o grupo irrompeu na escuridão da habitação. A cama estava desfeita, os armários abertos. Cortázar havia escapado subitamente na sufocante noite paulista.
Leda AstorgaNeste mesmo ano de 1975 publicou Fantomas contra los Vampiros multinacionales, um livro em formato de histórias em quadrinhos, em que um super-heroi é ajudado pelos intelectuais para lutar contra o avanço das multinacionais sobre os países do Terceiro Mundo. Denuncia ali aos governos autoritários na América Latina e a cumplicidade dos Estados Unidos no estabelecimento de regimes ditatoriais. Sua ideia era que o livro pudesse ser comprado nas bancas de revistas, chegando a um público que não consumia a literatura tradicional. Do mesmo modo que O Livro de ManuelFantomas... é uma tentativa de integrar o estético e o literário com um conteúdo político, desta vez através de uma forma nova, e buscando uma chegada mais efetiva ao grosso da população latino-americana. Talvez Cortázar tenha sido o primeiro a pensar na popularização da literatura através dos HQs (como é “moda” hoje em dia).
“Um dia, em 1976, Cortázar entrou clandestinamente na Nicarágua através do rio Medio Queso, e foi visitar a comunidade que Ernesto Cardenal havia fundado no arquipélago de Solentiname. Este episódio daria lugar depois a um vibrante relato, intitulado “Apocalipse em Solentiname”, e a um incansável trabalho junto à Frente Sandinista de Liberação Nacional. Foi outra maneira de descobrir uma paisagem humana assinada pela luta revolucionária. E foi também um ato de amor”. (segundo Fernando Butazzoni,Descobrir, nomear, amar, in Casa das américas, edição dedicada Julio Cortázar, 1984).
Enfim, foram muitas as tentativas do escritor em ajudar a humanidade. Estes são apenas alguns poucos exemplos dessa luta revolucionária, que terminaria anos mais tarde.

NOTAS
Texto originalmente publicado em Cronópios (2007), atualizado para a presente edição.
1. Como curiosidade: o sumário revela, entre outras notícias, a de um automóvel de vapor que seria apresentado em Indianápolis, e que ameaçava transformar a indústria automobilística.
2. Cortázar aproveitou-se de uma bolsa do governo francês e foi trabalhar como tradutor da Unesco.
3. Tradução livre: “O que segue se baseia em uma série de perguntas que Rita Guibert me formulou por escrito em nome da revista life, mas antes de respondê-las me parece indispensável deixar claras algumas circunstâncias vinculadas a estas páginas. A moral e a prática querem que um escritor expresse habitualmente suas ideias em publicações que pertençam ao seu campo ideológico e, inclusive, intelectual; não é isto que ocorre aqui e tanto a life como eu o sabemos e o aceitamos. Desde nosso primeiro encontro ficou entendido que meu consentimento não somente não significava uma ‘colaboração’ para life, mas que para mim representava precisamente o contrário: uma incursão em território adversário. life aceitou esse ponto de vista, e me deu as garantias necessárias de que minhas palavras seriam reproduzidas textualmente. Sou, pois, único responsável delas, ninguém as tem adaptado a exigências jornalísticas, e é justo dizê-lo desde agora.
4. Tradução livre: “Não somente desconfio das publicações norteamericanas do tipo de LIFE, em qualquer idioma em que apareçam e muito especialmente em espanhol, como também estou convencido de que todas elas, por mais democráticas e avançadas que pretendam ser, tem servido, servem e servirão à causa do imperialismo norteamericano, que, por sua vez, serve, por todos os meios, à causa do capitalismo.”
5. Tradução livre: “Simbolicamente, psicanaliticamente, capitalisticamente, Life entrega as chaves: a capa é a máscara e a contracapa é o verdadeiro rosto, olhando para a América Latina.”
6. Tradução livre: “A tradição do bufão do rei não se perdeu, porque é útil e necessária para os reis de todos os tempos, ainda que os de agora cheirem a petróleo e falem com acento texano”. Nos tempos de hoje essa afirmação de Cortázar poderia parecer premonitória, visto que o atual presidente dos EUA é texano e invadiu o Iraque (país petrolífero).
7. Tradução livre: “algum outro leitor igualmente sobressaltado estará dando de ombros ao dar-se conta-da-verdade: Julio Cortázar é comunista, e por isso vê inimigos escondidos em cada garrafa que lhe refresca as pausas”.
8. Tradução livre: “Cada um tem suas metralhadoras específicas. A minha, no momento, é a literatura.” Julio Cortázar, Revista Crisis Nº 2, junio de 1973.
9. A expressão “leitor-fêmea” foi muito criticada por feministas do mundo, Cousté (assim como eu) acredita que Cortázar foi mal interpretado. Abordarei essa questão em outro artigo.
10. Todo o capítulo 68 de Rayuela está escrito nessa “língua” criada por Cortázar, um pequeno trecho: “(..) De cada vez que procurava relamar as incopelusas, ele emaranhava-se num grimado queixoso e tinha de envulsionar-se de cara para o nóvalo, sentindo como se, pouco a pouco, as arnilhas se espechunassem, se fossem apeltronando, reduplimindo, até ficar estendido como o trimalciato de ergomanina no qual se tivesse deixado cair umas filulas de cariacôncia.”
11. Tradução livre: “Temos que lutar contra o idioma para que não nos imponha suas fórmulas e seus clichês, as frases feitas, tudo o que tão bem caracteriza um mal escritor”.
12. Basta ver um trecho do prólogo de Vargas Llosa à obra completa de Cortázar: “... repescando palabras del cementerio (los diccionarios académicos) para inflarles vida a soplidos de humor, o saltando entre el cielo y el infierno de la rayuela. El efecto de Rayuela cuando apareció en 1963, en el mundo de lengua española, fue sísmico. Removió Hasta los cimientos las convicciones o prejuicios que escritores y lectores teníamos sobre los medios y los fines del arte de narrar y extendió las fronteras del género hasta límites impensables. Gracias a Rayuela aprendimos que escribir era una manera genial de divertirse, que era posible explorar los secretos del mundo y del lenguaje pasándola muy bien, y, que jugando, se podía sondear misteriosos estratos de la vida vedados al conocimiento racional, a la inteligencia lógica, simas de la experiencia a las que nadie puede asomarse sin riesgos graves, como la muerte y la locura. En Rayuela razón y sinrazón, sueño y vigilia, objetividad y subjetividad, historia y fantasía perdían su condición excluyente, sus fronteras se eclipsaban, dejaban de ser antinomias para confundirse en una sola realidad, por la que ciertos seres privilegiados, como la Maga y Oliveira, y los célebres piantados de sus futuros libros, podían discurrir libremente. (Como muchas parejas lectoras de Rayuela, en los sesenta, Patricia y yo empezamos también a hablar engíglico, a inventar una jerigonza privada y a traducir a sus restallantes vocablos esotéricos nuestros tiernos secretos). (Llosa, 1992 -http://redescolar.ilce.edu.mx/redescolar/memorias/entrale_autor/lo_que_se_ha_dicho/cortprologo1.htm).
13. Isso ocorreu em 1945.
14. Chile, o dossiê negro.
***
4. Surrealismo e Julio Cortázar: Final de jogo
Julio Cortázar (1914-1984) nunca foi um apaixonado pela realidade. Desde pequeno permitia-se usar da imaginação que lhe povoava a mente com algo mais. Em várias de suas obras percebe-se sua “curiosidade” em relação ao surrealismo que teve como intenção descobrir e explorar “uma realidade mais real que o mundo real, cruzando as fronteiras do real” (Rayuela – o jogo da amarelinha). Para o autor, um dos obstáculos para se chegar a essa “realidade segunda” é o uso das categorias lógicas de conhecimento e de instrumentos racionais. Logo, Cortázar procura quebrar essas leis “naturais”. De um lado, cria uma tensão rítmica entre duas forças opostas: uma que dá o tempo “normal” e outra que a nega. De outro lado, desenha o espaço da geometria “natural”, ao mesmo tempo que a transgride.
Esse surrealismo, presente em Artaud, Magritte, Breton, entre outros, atualiza-se na obra de Cortázar. Portanto, não se trata do surrealismo como movimento artístico cuja característica foi a escritura automática, pois a escrita de Cortázar, ao contrário, é muito bem planejada, trabalhada e esculpida, mas o surrealismo francês (com o qual Cortázar teve contato e que facilmente é percebido em seus contos), cujo ponto básico é a crença em uma realidade dual na visão de mundo. Para esse surrealismo existe uma realidade percebida através dos sentidos e da lógica, que é encontrada na vida cotidiana, no trabalho, na tradição e nos hábitos. Mas também há uma segunda realidade que não se deixa entender facilmente, que perturba a comodidade e a tranquilidade da primeira, uma realidade que não é sentida e sim intuída, uma realidade da imaginação com sua subconsciência e seus desejos.
Essa abertura de possibilidades pode ser percebida na análise de vários de seus contos, [1] percebendo-se que Cortázar busca justamente a intensificação dessa abertura. Em suateoria do túnel Cortázar busca uma conciliação (ou amálgama) entre surrealismo e existencialismo. Essa teoria foi publicada em 1947, quando são propagados em Buenos Aires o surrealismo e o existencialismo.
A obra O Túnel de Sábato aparece em 1948 e é um romance de inspiração existencialista no qual Sábato conota negativamente o túnel, como vida subsumida e confinada. Ao contrário, Cortázar conota o túnel positivamente “…enquanto violência que comprime os flancos da linguagem, que demole o bastião literário para reconstruí-lo restituindo à palavra os poderes subjugados.” (YURKIEVICH, 1998). [2]
Em quase todos os contos de seus livros, Cortázar deixa um interstício aberto, uma fenda, um silêncio que interroga constantemente o final dos relatos. Como já dito, em concordância com os pensamentos do surrealismo francês Cortázar busca no cotidiano e nos hábitos uma outra realidade, uma realidade que não se explica e que pode irromper por meio de sonhos e/ou alucinações obsessivas, ou então através de uma “fissura”, aqui denominada ponto vélico. [3] Ou seja, há um rompimento com a realidade usual, a criação de uma nova (ir)realidade, uma ruptura que permite ambiguidades do destino no conto.
Assim, em Final del juego, o autor dá uma aparência de incompletude à obra e, contrariamente ao título, permite que cada conto, utilizando-se de uma expressão de Umberto Eco, fique “em aberto”, pois “operar um texto significa atuar segundo uma estratégia que inclui as previsões dos movimentos do outro” (ECO, 1968). [4] Cortázar dá ao leitor a possibilidade de saltar de um piso a outro, de ir de um texto a outro, de se ver obrigado a assumir quase totalmente o sentido e a direção da leitura. Sobre esse fato o próprio Cortázar, em entrevista, acaba por afirmar que nunca eliminou a ideia de leitor: “[é] por isso que em alguns de meus contos existem passagens que cada leitor pode entender à sua maneira. Eu também tenho minha maneira de entendê-los, e é até possível que já não seja a mesma que tive no momento de escrever determinada frase” (CORTÁZAR in PREGO, 1991). [5]
O movimento ambivalente de entender o conto enquanto se o está lendo, ou de “escrevê-lo” enquanto se lê, pode ser ilustrado com a litografia de Escher, Mãos desenhando. Ela permite a associação com o inacabamento, dado que dois “lados” se constroem e se “escrevem”. Há uma íntima ligação de cumplicidade entre autor e leitor, que surge no objeto em comum: o livro.
Enfim, este é apenas um preâmbulo sobre Cortázar e o surrealismo. Caso tenha interesse, procure ler Picon Garfield – Es Julio Cortázar un surrealista?

NOTAS
1. Nas análises realizadas na dissertação de MOURA se poderá verificar que os desejos acabam por criar situações de invasões entre os espaços dos personagens, alguns exemplos se encontram em contos como “El río”, “Los venenos” ou em “El ídolo de las Cícladas”.
2. A título de curiosidade, também Kafka em sua narrativa “O túnel” faz um diálogo com o existencialismo.
3. Em dissertação de MOURA encontra-se uma análise mais minuciosas sobre o ponto vélico.
4. BORELLO in LAGMANOVICH também se refere à Obra aberta de Eco em sua análise de Cortázar.
5. Nas análises realizadas na dissertação de Moura esse fato foi verificado de forma mais direta e específica.  
Susan Blum (Brasil, 1963). Contista e ensaísta. Pesquisadora no Grupo de Estudos sobre o espaço (UFPR) desde seu início em 2001. Autora de Novelos Nada Exemplares (contos, 2010). Escreveu, juntamente com Cassiano Viana, uma biografia de Julio Cortazar, ainda inédita. Contato: susanpessoa@yahoo.com.br. Página ilustrada com obras de Leda Astorga (Costa Rica).