novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......

novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......
convido-os a desenrolar alguns fios reais e ficcionais

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

REAL - Toda Letra - Mutações

Última crônica do mês de setembro.
MUTAÇÕES.
http://www.todaletra.com.br/2013/09/mutacoes/
A crônica completa:
Mutações!

A mudança - que eu ainda não completei – está me trazendo muitas reflexões e oportunidades.
Sempre sonhei em ter meu canto, talvez pelo fato de ser a caçula de quatro, sempre ter morado com alguém (primeiro no mesmo quarto que minha irmã), depois sozinha no quarto que era dos meus irmãos (mas ainda com os pais), depois casada (com marido), separada (voltei a morar com a mãe).
E, como imaginava, estou adorando cada dia, cada minuto, cada segundo, sozinha.
Nos primeiros dias não fiquei sozinha (estava amando alguém que veio dormir comigo, jantar comigo, viver comigo – foi uma ótima iniciação no novo lar: amor), mas estraguei tudo e a pessoa evaporou. Guardo-a num cantinho de minha alma (uma sementinha para algum futuro?).
Agora, totalmente só, observo as sombras, o vento uivando nas janelas, o caminho do sol pelo apartamento, os pozinhos que se acumulam, os cheiros peculiares de cada instante do dia... são pequenas grandes descobertas de nós dois: ap e eu. Eu e ap.
Juntos admiramos o nascer do sol, o pôr-do-sol, preparamos o lanche e a pipoca, a sopa do final do dia, a rede na sacada (presente do primeiro amor do ap), o vinho na sala vazia, o licor no escritório cheio de livros, a água ao lado da cama de casal.
Sinto uma vibração diferente no corpo. Procuro olhar com vagar as transformações dentro de mim: mas quanto mais eu olho, mais eu vejo aquela menininha que ficava em cima do armário do quarto, para fugir de todos. Para poder ficar apenas olhando para a vida...  pensando na vida.
Fiz 50 anos. E descubro uma Receita de Estranhamento:
“Fique olhando para suas mãos longamente. Observe a pele que não é mais esticada, as pequenas cicatrizes (antigas das unhas de gatos e recentes da mudança), veja as unhas quebradas de tanto carregar livros, a pele puxada ao lado da unha pelo hábito antigo (resquício de quando roia unhas na infância?), as veias mais saltadas, a cor de cada pedaço da mão. Quando sentir que está olhando para algo externo e diferente, abra mais os olhos e a consciência: sim! É você mesma! Essas mãos são suas. As mesmas mãos de menininha que pegavam os gatos, que subiam nas árvores, que andavam de bicicleta e que já tinham o hábito de escrever.”
Sim. É estranho. Estranho estar dentro deste corpo, como me era estranho estar dentro do mundo quando criança. Sempre me senti deslocada, Quando criança, queria ser adulta. Agora, adulta, me descubro uma criança. Já sou vista como velha. Mas não me sinto nem um pouco velha.
Ainda tenho tanto a fazer, tanto a amar, tantas promessas a cumprir.
E, ainda agora, olho esta menininha aqui ao meu lado. A observo correndo pelo ap, dançando na sala vazia ao som de M.J., ouço suas risadas por ter realizado este sonho antigo: ter seu próprio canto.

E é admirando esta menininha que sinto que finalmente estou me encontrando!   

sábado, 7 de setembro de 2013

FICÇÃO - O ESTRANHO CASO DE GRACE UEI

Grace acordou cega.
Abriu seus olhos como sempre, mas não viu o teto de seu quarto, que era pintado de céu noturno, com aquelas estrelas e planetas que brilham após um tempo de luz incidindo sobre eles. Fechou seus olhos de novo, imaginando que estava ainda em um sonho. Mas quando os abriu novamente, lentamente, a escuridão teimou em fixar-se ao seu redor.
Apavorada, gritou pelos seus pais. Eles a vestiram rapidamente, e a levaram ao hospital de Olhos. Lá, o oftalmologista usou sua lanterninha e verificou que suas pupilas não reagiam à luz.
Fizeram uma anamnese. Descobriram que há algum tempo sua acuidade visual estava piorando. Primeiro sua visão periférica. Ela tinha que voltar seu rosto para poder realmente enxergar o que estava ao lado. Depois a sua eficiência visual foi diminuindo, e ela começou a andar mais devagar, observando mais as coisas para não tropeçar ou cair. Mas só agora estava falando isso. Primeiro porque não queria preocupar os pais, segundo porque achava que era simples stress, e que logo passaria.
Outro dia, enquanto estava na sala de espera e sua mãe havia ido ao banheiro, ela sente um cheiro estranho que se aproxima, e uma mão acaricia seu rosto dizendo: “tudo ficará bem”. Aquela sensação de uma mão estranha permanece em seu rosto.
Marcaram-se novos exames.
Ela voltou para casa, mas sua vida passou a ter novas visões literalmente. Os caminhos tão trilhados, do quarto para a cozinha ou banheiro passaram a ser labirintos obscuros e trincados, cheios de armadilhas. Tomar banho, hábito tão diário e natural, passou a ser um estranhamento constante. Para Grace era como se fosse outra mão que estivesse limpando seu corpo.
Alimentar-se. Beber água. Torturas constantes em que precisava - pessoa tão independente que era - de outros para a ajudarem. Aprendeu o sistema de relógio: arroz às seis, bife às três, batatas meio-dia, feijão às nove. Grace que tinha tanta mania de limpeza e que lavava suas mãos logo ao entrar em casa, agora tinha que enfiar um dedo em seu copo para sentir aonde a água ou suco chegava. Lavar louça! Tanto quebrou que quase pensou em comprar louça de acrílico ou plástico.
Vestir-se. Outro terrorismo da cegueira. As meias são as mesmas? As cores de roupa combinam? Percebeu que certas roupas que usava antes com frequência (segundo a família) lhe eram agora “nojentas” ao tato. Recusava-se a usar aquele vestido tão batido de outrora (hoje tão duro, tão seco, tão arranhoso no corpo). Mas a maciez de outro, que ela nunca usava antes lhe agradou tanto que preferiu usá-lo agora, pois o Sentia abraçando seu corpo, num aconchego que ela tanto necessitava. Uma segunda pele protetora.
Com o tempo ela tenta se lembrar de como é seu rosto, mas percebe que ele se desfocou e permanece como nebulosa incógnita. Desorientada, um pouco apavorada, pede para sua mãe que a descreva.
Grace, seu rosto é gracioso e feminino. Seus olhos amendoados castanho- escuros são doces como mel, suas faces rosadas são maçãs de desejos, há uma marquinha de nascença entre seus olhos -, e o seu rosto vai se desenhando com as palavras de sua mãe.

Os exames médicos foram rareando. Essa doença estranha, tratada apenas como um caso extraordinário. Chamavam-no: “O estranho caso de Grace Uei”. Ou: “a cegueira de Grace Uei”. Psicólogos, oftalmologistas, cientistas, pesquisadores do mundo todo já haviam manuseado (literalmente) Grace durante este escuro ano.
Grace acorda para mais um dia. Abre os olhos e .. surpresa! As estrelas e planetas a saúdam, como se nunca tivessem saído dali. Ou como tivessem apenas feito uma rotação ou translação e tivessem voltado ao ponto de partida. Ela olha, extasiada, suas mãos, seu quarto, o caminho até o banheiro. A alegria de poder rever todas as coisas tanto reconhecidas pelo tato. A surpresa de ver as mudanças na casa... isso tudo foi enchendo Grace de uma graça suprema.
Ao entrar no banheiro corre ao espelho.
E se assusta.
Uma criatura a encara. Uma pessoa com olhos de enxofre.    
(este conto está na coletânea "Então, é isso?" e também na revista Zunai - 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

REAL - Crônica Toda Letra - Amar pode matar.

Mais uma crônica saiu!
A primeira de setembro.
Que venha a primavera com seus renascimentos!
http://www.todaletra.com.br/cat/coluna-da-susan/

Copio aqui na íntegra, caso não queiram ir até o site. Mas recomendo que comentem por lá.

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Amar pode matar!

Por Toda Letra em 2 de setembro de 2013
Creio que todos já conheceram alguma mulher muito doce, gentil, meiga e amorosa. Cuidado! As aparências enganam. Não. Não estou dizendo que ela não é carinhosa e meiga. Ou que não ama. Sim. Ela ama. Mas este amor, esta meiguice, este carinho pode acabar matando, sufocando ou só afastando as pessoas.
Esta mulher geralmente é ótima para amizades. Mas não consegue ter um relacionamento e sempre coloca a culpa no outro. “Mas eu fiz tudo por ele!”, “Eu me dediquei. Doei-me totalmente”, “Eles são ingratos. Não sabem o que querem”. Estas são frases correntes desta mulher.
Não a culpem. Ela não tem consciência disso. Acredita de verdade que é “perfeita” e que os homens é que não sabem o que querem, afinal, eles finalmente encontraram uma pessoa incrível (inteligente, meiga, dócil, maravilhosa). Como podem não perceber isso?
Na vida, amadurecemos nos momentos certos. Conheço pessoas que são maduras com dez anos de idade. Outras com vinte. Mas a maioria amadurece quando tem trinta ou quarenta anos. Pois bem! Esta semana farei cinquenta anos. E o meu maior presente foi descobrir que sou imatura! Que ainda tenho MUITO a crescer, aprender, destruir e conhecer (de mim mesma).
É doloroso saber que tudo que acontece com você é culpa exclusivamente sua. Que de nada adianta tentar colocar a culpa nas circunstâncias, nas pessoas etc. Não devemos fazer isso nunca. Devemos perceber QUEM realmente somos.
Para estas mulheres que são Felícia (descobri um pouco dela em mim, com horror), que amam tanto que querem prender (fazendo surpresinhas, dando presentes, tentando sempre dar apoio e amor), peço que abram os olhos. Que percebam o quanto isso sufoca, o quanto acaba matando.
felícia
Deixem as pessoas e as coisas que vocês amam livres! Sei que falar é fácil. Que a mente aceita e acha bonito. Mas devemos praticar isso. Liberdade, PRATIQUEM!
Sugestão de uma mulher nada sábia? Canalizem este amor imenso com atos caridosos para quem precisa. Logo divulgarei um projeto muito bacana que espero que sirva como filete de água para diversos rios futuros.
Conhecem a velha frase de Quintana? “O segredo é não correr atrás das borboletas… É cuidar do jardim para que elas venham até você”? Alguns dizem que na verdade é outra frase: “Não corra atrás das borboletas; plante uma flor em seu jardim e todas as borboletas virão até ela” – D. Elhers. Independente da autoria, estas frases são verdadeiras!
Que o mês de setembro, com a primavera, permita esta reflexão dentro de cada um de nós! Devemos plantar amor e permitir que as flores sejam livres (não as prendam em vasos). E que venham as borboletas!
*Susan Blum Pessôa de Moura, formada em Psicologia (PUC-Pr, 86) e em Letras (Universidade Federal do Paraná – UFPR, 2003). Mestre em estudos literários (UFPR, 2004). Possui publicações acadêmicas em revistas literárias como Fragmentos (UFSC), Letras (UFPR), Magma (USP) e Alpha (Unipam). Autora do livro de contos Novelos Nada Exemplares (2010) e participante da coletânea de contos (de autores paranaenses) Então, é isso? (2012). Pesquisadora no Grupo de Estudos sobre o espaço (UFPR) desde seu início em 1999, ministra cursos de criação literária no CELIN da UFPR (desde 2008) e escreve quinzenalmente para a Toda Letra.