novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......

novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......
convido-os a desenrolar alguns fios reais e ficcionais

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

FICÇÃO - Sinfonia do caos

 

Sinfonia do caos

 Dezembro de 2020

Madrugada - de novo acordo, quando durmo, com os latidos dos cachorros do bairro. Todos latem, em todas as casas e apartamentos, como se algo quisesse entrar.

Ou então eles sentem o cheiro.

O cheiro da morte.

É uma sinfonia sem ordem. Latidos que nos arrepiam. Colocam nosso corpo em estado de alerta e nossa alma em estado de dúvida.

Dúvida se estamos bem.

Dúvida do número de mortos.

A sinfonia recebe, de vez em quando, novos acordes: as ambulâncias que não sabem para onde ir, já que os hospitais estão lotados. Um ou outro carro ou moto passam em velocidade exacerbada, como que fugindo de algo.

Rolo na cama e vejo o horário no celular: 03:00.

Minhas gatas acordam com meu movimento e me encaram, com ceticismo.

Minha barriga ronca. Não tenho me alimentado bem. Um mosquito zumbe. Era só o que faltava!

Levanto, acendo a luz, procuro um pouco por ele.

Desisto e vou até a cozinha beber água. Não há muito o que comer. Minha fome é outra.

Vou até a sacada, meu único ar nestes últimos dez meses.

Vejo as luzes coloridas de algumas poucas janelas. Farejo o ar, confiante que estou protegida no 17º andar, sem máscaras.

Respiro fundo. Suspiro.

A partitura canina é longa. E dá espetáculos todas as madrugadas.

Começo a observar as estrelas, em busca de um OVNI. 

Uma solução?

Relembro noites ancestrais de acampamentos. As matas, os rios, as estrelas.

Um tempo antigo que não cabe mais em meus dias.

De repente meus pelos se eriçam... minha respiração se suspende... minhas pernas ficam moles...

O que houve? Por um tempo fico perdida.

Até que encontro o motivo:

Silêncio!

Total. Apavorante. Sepulcral.  

Nenhum latido. Nenhuma sirene. nenhum motor.

Até as estrelas parecem ter parado de piscar.

Me sinto sufocada naquela sacada.

Ando de costas, devagar, e entro no apartamento, fechando a porta de vidro.

Coração esmagado.

Deito...

e tento dormir...



para desanuviar um pouco:



quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Ficção (ou real?) Era uma vez...


 Era uma vez um país fervorosamente religioso onde a "pastora" matava, o "padre" roubava e o "espírita" estuprava. Os Centros de religião africana como candomblé eram massacrados e os "diferentes" (negros, homossexuais e bandidos) recebiam punições desde surra até morte. 

Os "cristãos" não usavam máscaras em plena pandemia, compartilhavam inverdades e destilavam discursos de ódio.

FIM. 


LoboMauro no Twitter: "Ficam bradando que a bandeira do Brasil não ...

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Ficção -Lua Cheia

O homem estava apressado, corria muito, queria entrar no mirante da torre panorâmica a todo custo.
Estava tão inquieto que o guarda ficou preocupado. O segurança não queria deixar o homem subir no mirante. Disse que estava fechado por causa da quarentena. 
Mas o homem, ansioso, empurrou o guarda e correu para as escadas....

(texto: Susan Blum. Foto: Daniel Castellano)
Este fotógrafo é maravilhoso e tem muitas fotos belíssimas, recomendo visita ao instagram dele e ao facebook.
Instagram: @dicastellano

sexta-feira, 24 de julho de 2020

REAL-FICÇÃO - Eu não consigo respirar


Eu não consigo respirar
Aos que têm fome de comida, de saúde e de justiça.

Tenho fome.
Não há comida. Então pego terra.
O senhor me castiga.
Este ferro pesa, meu rosto sua e, como tenho sede, bebo o suor que escorre.
Não consigo respirar.

Tenho fome.
Não há saúde. Então uso máscara.
O vírus me pega.
A cama cansa, o tubo machuca, mas ele traz ar que caço sofregamente.
Não consigo respirar.

Tenho fome.
Não há justiça. Então grito por ela.
O policial me sufoca.
O joelho aperta, meu corpo clama, minha bexiga solta, eu sussurro
Não consigo respirar...

ϟ○• História e Sociedade •○ϟ: A máscara de flandres
Máscara de Flanders

Este texto eu escrevi um dia depois da morte de Floyd, nos EUA, em 25 de maio de 2020.
Nos dias seguintes, várias manifestações no mundo todo aconteceram, trazendo luz e reflexão sobre as vidas dos negros e o tratamento dispensado à eles pelos policiais.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Ficção - Isolamento

Em 23 de abril de 2020 o Jornal Plural publicou um conto meu.
Pioneira neste jornal, abri a seção de contos que continuou depois.
Feliz por este feito.
Somente agora trago para vocês este conto.


Isolamento

2020.

Curitiba.

23 de março.

Coronavírus COVID-19

Isolamento voluntário.

Campainha. Desconfiada. Olho mágico. Surpresa. Depois de meses. Ali está o ex-namorado.

Apesar de saber, pergunta:

“Quem é?”

“Sou eu”

A voz ainda mexe com ela.

Abre a porta e quase o cumprimenta. Mas lembra de manter distância. Abaixa a mão. O abraço fica na vontade.

Isolamento social mexe com a gente.

Distância. Álcool gel. Lavar as mãos.

Sentam-se então no sofá. Nos extremos.

Ele pede desculpas, avisa que cortaram a água do seu bairro: precisa tomar um banho.

Que não tem familiares. Que os amigos não abriram a porta. Que lembrou dela.

Estas palavras foram um banho de água fria em seus desejos ardentes. Vontade de expulsá-lo.

O cheiro dele – que sempre a fascinou – fez mudar de ideia.

Isolamento social mexe com a gente.

Ofereceu box, água, sabonete e toalha.

Enquanto ele assoviava feliz no banho, abriu a caixa que estava embaixo da cama. Lá ainda estavam o robe e chinelos.

Deixou em cima da cama. Avisou em voz alta. Foi para a cozinha.

Lá, colocou o vinho na geladeira e preparou noisettes congelados.

“É só para mim” – tentava se convencer.

Mal ouviu o chuveiro desligando, gritou sobre os comes e bebes.

Mordeu a língua…

… mas isolamento social mexe com a gente.

Aquele sorriso gostoso, com cheiro de homem, entrou na cozinha.

Tentou se concentrar na conversa leve sobre cinema, livros e amenidades.

Não queriam falar do assunto recorrente.

As risadas apagaram as distâncias profiláticas.

De repente, já estavam se abraçando.

Isolamento social mexe com a gente.

Abriu os olhos depois do beijo, e já estavam na cama.

Corpos suados felizes repousavam esquecidos do mundo.

Era só um banho. Mas a noite foi brindada com sonos entrelaçados.

Isolamento social mexe com a gente.

Acordam cedo, com os pássaros – agora se escutam até os pássaros!

Vão para a cozinha. Ovos mexidos, chocolate, suco, frutas, coisas da despensa.

Ela nunca vê TV nesta hora, mas é o hábito dele, e ela permite.

Ali a realidade mata o sonho.

Que a pandemia piorou. Que agora é decretada quarentena forçada. Que NINGUÉM deve sair de casa. Que o número de mortos triplicou. Que o número de infectados explodiu. Que o cheiro da doença e da morte parece penetrar em todos os poros.

Sem ar ela vai até a sacada e observa o vazio.

Atrás dela, cheira o medo dele.

Não sabe se é medo da situação lá fora ou aqui dentro.

Isolamento social, não… quarentena mexe com a gente.

Não podem burlar a regra.

Ele fica.

Mas os mantimentos que ela comprou eram para UMA pessoa.

E os dias passam.

E começa a implicar toda vez que ele pega algo para comer ou beber.

E os banhos parecem demorados.

E a TV ligada vai irritando.

E começam a discutir por qualquer coisa.

Quarentena mexe com a gente.

Não precisavam mais da distância. Mas a raiva não permite mais uma aproximação.

Cada refeição, cada banho, cada briga pelo canal diferente, traz distanciamento.

Alimenta a raiva, o ressentimento, o ódio.

Uma noite, ela vai até a cozinha e … ele está comendo o último chocolate.

Ela pula em cima dele.

Leoa feroz com instinto de preservação.

Quarentena mexe com a gente.

No dia seguinte, ela acorda com o som da TV. Nela, avisam que tudo se acalmou.

A quarentena foi revogada.

Levanta devagar do chão da cozinha, pegajosa pelo líquido avermelhado.

Quarentena mexe com a gente.







(Texto e Foto: Susan Blum) Link para o Jornal Plural: https://www.plural.jor.br/noticias/cultura/isolamento/