novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......

novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......
convido-os a desenrolar alguns fios reais e ficcionais

terça-feira, 20 de outubro de 2015

FICÇÃO - Expresso

Passos rápidos porém abafados e antes que ela pudesse se virar uma mão fedida tapa a sua boca. Uma mão com cheiro de mijo podre.
Entre o Mossunguê e o Imperial. Uma faca fria é encostada em sua garganta. Bem que a avisaram que não devia ir a pé por ali. Mas sua carona se enganou na quadra e a deixou por ali indo embora... A mão libera a sua boca e vai para os seus seios.
Desespero. Rua vazia. Dez e quarenta da noite. Lâmpada queimada.
Ou quebrada?
Nojo. Vontade de gritar. Vontade de vomitar.
Ela sente um réstea de esperança ao ver as luzes de um Expresso que se aproxima. É puxada um pouco mais para dentro do mato, mas resiste um pouco e observa os passageiros na esperança de fazer algum sinal.
Porém, tudo o que vê são 13 pares de olhos dormindo (com a cara amassada na janela), 137 pares de olhos grudados em seus celulares (com o cérebro amassado no visor) e um par lendo um livro.
Novo desespero. O expresso está passando e não há mais esperança.
Mas....
ali!
No fundo do ônibus!
Dois olhos cravados nela e no seu estuprador que já lhe arrancou a blusa e está tirando sua saia.
Ela quase que sorri achando que algo será feito. O passageiro irá gritar! Irá pedir que o motorista pare para todos ajudarem a pobre moça! Está salva!
Até que percebe, na última curva do Expresso: o olhar tem cheiro de mijo podre.

domingo, 11 de outubro de 2015

FICÇÃO - Mors janua vitae


O amor é vida quando não é morte; é berço e também sepultura.
(Victor Hugo)

Paz. Era o que sempre sentia quando passeava pelo campo santo, de noite. Muita paz. Gostava destes passeios noturnos, pois o fazia esquecer um pouco da perda terrível que tivera anos antes. Em um acidente de carro perdera toda a família: pai, mãe e irmãos. Ele ficou sozinho. De repente a sombra do grande ser alado inundou seu espaço. Desceu e pousou suavemente - apesar de tão grotesco - na sua frente. Assustou-se, achando que a coisa era com ele. Mas a dor que seguiu foi bem maior!

– Sonatta, vou ter que levar sua amada, a sua Alma.
– Minha alma? Ou minha amada Alma? – perguntou, finalmente reconhecendo quem era.
– Não confunda as coisas. Está na hora dela. Sei que vocês se amam, por isso acho melhor ser você a avisá-la. Diga que se prepare, pois em sete noites a levarei. É apenas um ritual, uma introdução, uma revelação. Ela nada deve temer. É apenas uma passagem.
– Não pode ser 13 noites? Pretendíamos viajar um pouco. – Segurou a tempo a piadinha de humor negro – mas não segurou a tempo a raiva diante daquele ser mais que grotesco –  Oh, ser funesto! O que queres com minha amada Alma?
O ser que ele chamou de funesto parecia ter dado um sorriso e um leve dar de ombros (como se tivesse rosto) – Está na hora de eu levá-la.
- NÃO! – gritou Sonatta. NÃO vou permitir isso!
- Tenha calma meu amigo. Apenas sigo ordens superiores. Não sou eu quem decide.
- Mas vocês não podem fazer isso! Ela está aqui há bem menos tempo que eu. Não é justo! Ela chegou aqui depois de mim. Teve pouco tempo aqui! Não é justo!
- Justiça? Não se trata de justiça, meu amigo. A vida e a morte nem sempre são justas. Tenho consciência de que nem todos querem ser levados daqui para lá. Mas apenas cumpro minha obrigação. É a lei natural das coisas. E sobre o pouco tempo dela aqui com você: se o amor de vocês é verdadeiro, vocês vão se reencontrar do lado de lá. Em outras vidas. Não acredita nisso?
- O que posso fazer? Peça! Peça o que quiser! Por mais que tenhamos outros encontros, é nesse que quero permanecer com minha amada, pelo menos por mais um tempo.
– Calma... logo vocês terão um reencontro de carnes. Já lhe disse que nada posso fazer. Caso não tenha percebido, aqui não há corrupção. Já perdi muito tempo aqui. Apenas avise-a que em 7 noites voltarei para buscá-la. Que ela esteja pronta. Que a alma dela esteja pronta para ser levada ao outro lado.
Finalizando suas palavras, este ser gigantesco abriu as asas enormes e voou. Sonatta lá permaneceu, como uma daquelas estátuas de mármore, tentando se convencer de que tudo foi uma ilusão dele. Que aquele ser era uma das artes cemiteriais imóveis - como ele naquele momento. Totalmente petrificado pelo horror da perda que logo teria. Mas como um sinal da realidade, uma pluma branca daquele Ser pairou no ar, quebrando a pétrea atmosfera, encontrando Sonatta mortificado pela notícia.
O peso da pluma lhe abriu os olhos e tentou tomar consciência do fato. A leveza habitual que ele sentia no campo santo se transformou em um lodaçal profundo que lhe tragava os pés como se houvessem bolas de chumbo acorrentadas neles.
Foi se arrastando para casa, sentindo um odor fétido por todo o caminho. Sentia-se entrando em uma cova funda.  Enterrou-se em sua dor.
Lá dentro, acabou recordando de vários contos que sua mãe contava. Ela era uma mulher incrível, amava música e poesia (daí o nome dele) e vivia lhe contando histórias. Sonatta não recordava o nome  do conto
"creio que era Minha vida querida" - pensava, mas falava de um homem que amava sua noiva e que um dia a Morte viera buscá-la. Ele propôs dar metade de sua vida para a futura esposa. E assim foi feito, até que um dia...
Mas agora não era hora dele pensar em historinhas. Este Ser alado de hoje de noite não aceitaria que ele doasse metade dos seus anos aqui. Ele foi bem categórico.
O que poderia fazer? Pensou então em fugir com ela. Viajar pelo mundo, sempre escapando do olhar tenebroso daquele ser alado. Ah, se tivesse a capa da invisibilidade do conto dos três irmãos. Poderia então fugir deste destino fatal. Mas então lembrou de novo de sua mãe, e de uma certa história de "alguma coisa em Samarra". Com esta história recordou que ninguém foge do destino maldito.  Isso tinha que acontecer justo com ele? Estava enterrado em uma sepultura escura quando finalmente Alma o resgatou dali depois do acidente de sua família. E agora teria que perder Alma? Não aguentaria!
Ali permaneceu por dois dias, não queria pensar no assunto, enterrou-se em seus próprios pensamentos e dores. Não queria falar sobre isso com ninguém.  Este sumiço preocupou Alma que foi procurá-lo. Ela de novo o alforriou, como na vez do acidente. Foi depois dele que Sonatta conheceu Alma. Foi um encontro de almas.
Eles não estavam juntos há muito tempo (apesar do tempo ser algo relativo). Assim, em respeito à ela, Sonatta procurou ficar alegre ao lado dela, mas a cada instante sentia o peso e o vento do pêndulo do relógio como uma foice prestes a cair sobre os dois. 
Passou a contar o tempo somente a partir desta remissão.

Então, nesta primeira noite, saí com Alma e ficamos passeando pelo terreno santo do amor e da paz. Foi uma noite memorável, com imensas trocas de energias de nossas almas e espíritos. Senti a Alma dentro de mim com todas as nossas forças. E sei que ela sentiu o mesmo.  Nada haveria de acontecer. Foi tudo um sonho. Terei a Alma comigo para sempre. Declamei para ela o Soneto de Fidelidade, ela me abraçou forte e lá ficamos, admirando a Lua Cheia. Nada iria nos separar! - Minha Alma! Minha Alma!  Eu suspirava de prazer.
  
Na segunda noite senti que a raiva se apossou de mim com uma força destruidora. Blasfemava, praguejava contra Ele. Por que comigo? Por que com ela? Por que conosco? Não era justo! Ela estava aqui há menos tempo que eu. Não merecia isto! Eu queria bater em todos que se aproximassem dela (se isto fosse possível). O ódio que eu sentia era imortal. Se fosse possível acho que mataria o ser alado para que ele não levasse Alma de mim. Lembrei-me do conto Mineirinho, de Clarice Lispector. Fazer justiça com as próprias mãos. Era justo que Alma ficasse aqui comigo. - Minha Alma! Minha Alma!  Eu rosnava entre os soluços!

Na terceira noite eu me lembrei de um conto de Malba Tahan que minha mãe contou certa vez. Comentei sobre ele lá no início, lembra? E comecei a pensar na possibilidade de doar metade de minha existência ali (metade de meus anos), para que ela pudesse permanecer comigo. Cheguei a cogitar esta possibilidade diversas vezes. Afinal, ela era “minha vida querida”. Implorei que o Ser alado viesse ao meu encontro para discutirmos possibilidades. Mas eles sequer apareceram para conversar comigo. Devem ter ouvido meus lamentos e lamúrias. Mas não se dignaram a negociar comigo. - Minha Alma! Minha Alma!  Eu me lamentava.

Na quarta noite me enfiei em uma cova profunda. Nada me tirava de lá. Sequer a voz da doce Alma que me alcançava lá no fundo do poço conseguiu me trazer à tona. Eu apenas queria o sono eterno. Eu queria apenas vestir o paletó de madeira. A impotência perante os fatos me deixava melancólico. Neste momento funesto apenas recordava de poemas de Poe, como Ulalume, Anabell Lee e o corvo. Nunca mais veria Alma. Nunca mais. - Minha Alma! Minha Alma! Sussurrava com melancolia. 

Na quinta noite algo estranho aconteceu. Uma certa calma e lucidez começaram a transbordar em mim. Uma doce e suave aceitação começou a penetrar em meu espírito. Um suspiro imensíssimo como se fosse o último alento iniciou dentro de mim. Lembrei-me do conto Amor, de Clarice Lispector. Eu sabia que não era justo que eu afastasse Alma da Vida. Ela merecia viver. Fui ao encontro de minha Alma. Eu queria apenas a felicidade dela. Eu queria apenas... Minha Alma! Minha Alma!     
Quando ela me viu indo ao seu encontro soltou a velha piadinha que sempre achei sem graça, mas que hoje me causou arrepios. "ora, ora, quem é vivo sempre aparece" e deu sua risadinha suave de sempre. Resolvi que deveria contar para ela. Estava decidido. Tudo já estava decidido! Passeando com Alma, naquele vermelho-celta do final do dia que anunciava o fim de um amor tão lindo,  eu sabia que devia contar para Alma de sua partida desse mundo.
Justamente quando me veio este alívio imenso, esta aceitação tranquila, para contar para minha Alma sobre o Ser alado que viria buscá-la, a sombra dele apareceu, e com um golpe de seu instrumento longo e afiado, ele sibilou: – Alma, chegou sua hora!
Em um relance vi o olhar surpreso e assustado de Alma. Eu queria contar. Sério! Eu ia contar hoje. Mas era tarde demais. Não percebi como os grãos de areia caíram rápido na nossa ampulheta do amor. E então só me restou isso: vê-la sendo levada para o outro mundo.

Era tarde demais! Ela já estava com um pé no berço!
(Texto: Susan Blum. Imagens: retiradas da internet).