Existir. Palavrinha estranha
que permite que reconheçamos, ou não, os outros ou as coisas. De que forma
existimos? De vários jeitos. Alguns deles, mais comuns hoje em dia, sem contar
o nome e o sobrenome:
Dígitos.
Quanto mais dígitos a pessoa tiver, mais ela existirá e não estou aqui falando
de idade. Já se foi a época em que as pessoas com mais idade eram mais
respeitadas. Hoje em dia os idosos não são centro das atenções e suas histórias
repetitivas como discos arranhados apenas prolongam uma dor arrependida de termos
dado atenção, de termos colocado a agulha nas primeiras ranhuras com um simples
“Olá, como vai?” provocando com isso o início do derramamento da areia na
ampulheta de anos empoeirados. Cada pedrinha da areia uma doença, uma dor, um
arrependimento, uma reclamação...
Não. Estou falando aqui de
outros dígitos. Os dígitos monetários. Como no verso de Trilussa, estou falando
daquele indivíduo, aquele “um”. Que se transforma após ter vários zeros
seguindo-o. Quanto mais zeros seguindo o “um”, mais ele terá outros zeros que o
admiram, que puxam seu saco, que o elogiam falsamente.
Digital. Mas
você também pode existir se estiver ligado a outro digital: o mundo virtual. Uma
vez me disseram que se eu não achasse o meu nome no Google, eu não existiria.
Como sou curiosa desde pequena (vide Menina curiosa ) fui colocar meu nome no
Google. Após breve expectativa, descobri que eu existia para o mundo. Posso não
existir para aquele homem que considero fantástico, mas existo para o Google.
Digital. Também
existo se tenho outra digital: uma digital que abre portas para mim
(literalmente, pois a porta do CELIN só abre após eu inserir meu dedo nela),
apesar de por vezes demorar para me reconhecer (então não sou só eu que demoro).
Bastam algumas tentativas e logo escuto o som da porta liberando minha entrada.
Esta é a mesma digital que está ao lado de meu nome, na minha carteira de
identidade. Um labirintozinho de sulcos em um redemoinho.
Então, parece que até que
não é difícil existir. Caso você tenha um, ou dois, ou três dos acima citados,
você, sem sombra de dúvida... existe!
Mas conheço casos de
crianças que não existem. Pequenos brasileirinhos que praticamente nascem
trabalhando e – consequentemente – ajudando o país a existir no cenário
mundial. Mas que não existem literalmente. E digo isso não somente pela
invisibilidade social (a não ser quando estão muito perto do nosso olhar e que
seu cheiro é sentido pelos frágeis olfatos acostumados a cheiros de carro novo ou
amaciante nas roupas, além de perfumes franceses). Mas também por outros
fatores.
Quem são estas crianças?
São brasileirinhos descartados
que nos ajudam a saborear uma especiaria maravilhosa: castanhas de caju.
Devido ao processo de
fabricação da castanha estes seres inocentes, sem infância, perdem toda e
qualquer chance de existirem. São seus dedos que deram origem aos vários nomes
citados anteriormente: dígitos, digital. São seus dedos que tiraram a
possibilidade de existirem. Os dedos que deviam estar ocupados com pipas,
bexigas, guidão de bicicleta, segurar bolas, jogar pedras no jogo da amarelinha.
Estes seres infantis não
existem. Nunca existirão. Foram descartados pela sociedade que tanto valor dá
ao pensar! E os culpados disso somos cada um de nós! Porque não pensamos sobre
isso. Logo, também não existimos como seres humanos!
Se você quer
pensar sobre o assunto e pretende fazer algo, leia em http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/criancas-sem-identidade-o-trabalho-infantil-na-producao-de-castanha-de-caju/
Curioso
sobre os dedos trazerem os dígitos e digitais? Veja mais em http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/odiss-ia-digital-a-aventura-do-conhecimento-humano-do-dedo-ao
Quer ler
uma linda historinha sobre o caju? Procure o livro Tempo de caju, de Socorro
Acioli, com ilustrações de Maurício Negro (editora Positivo – projeto Zepelim).
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