Vendo algumas postagens de amigos no facebook e vendo certas hashtags no twitter, eu acabei assistindo ontem BBB, pois queria entender o que tinha acontecido para gerar uma certa “briga”, falando de Sai Rodolffo, Fica Rodolffo e mimimi.
Pois bem. Graças que o programa faz uma certa “retrospectiva” (não sei se fazem isso sempre). Assim pude ver tudo que aconteceu. E sim, fiquei na torcida pela saída do Rodolffo.
Vamos lá. Em primeiro lugar quero dizer que não tenho insônia, geralmente durmo muito bem, indo deitar lá pela meia-noite e acordando cedo. Mas esta noite fiquei até 3 da manhã, pensando, sentindo, refletindo. Foram várias memórias ativadas, desde as lembranças e sentimentos até as memórias visuais, auditivas e até olfativas.
Espero conseguir resumir aqui o que foi esta noite com tudo isso...
Em primeiro lugar, quero dizer que não é mimimi.
Bom, logo que entrei na faculdade de Psicologia uma professora disse algo que marcou minha vida pessoal e profissional: a escuta livre de preconceitos. Para mim pode parecer bobagem uma mulher sofrendo por ser acima do peso, com tanta fome no mundo (estou falando de 1982). Mas é um sofrimento dela e devo respeitar. Ou, uma mulher muito rica sofrendo a perda do cachorro a ponto de procurar ajuda psicológica. Esta é a dor dela. As dores são únicas e particulares, devemos ouvir e ajudar a minimizar esta dor. E não ficar falando que é mimimi. Sempre lembro de um ex-namorado que se irritava quando ele reclamava de alguém e eu ficava “defendendo” a pessoa, dizendo que não sabíamos o motivo desta pessoa agir assim, que poderia ser um trauma.
Agora quero partir para o assunto em si. Meu pai era nordestino de pele mais escura, minha mãe uma catarinense filha de alemães. Tiveram 4 filhos, dois claros (de pele, olhos e cabelos claros) e dois mais morenos (de pele, olhos e cabelos escuros e crespos). Em toda a minha vida eu odiava a hora de escovar os cabelos (porque doía), e sempre escutei (até hoje) quando estou com minha irmã: “nossa, mas vocês são irmãs? Não parece!” Claro, ela, de pele clara, cabelo mais claro, olhos verdes. Eu, mais morena, olhos quase pretos, cabelo escuro e crespo. E, para meu “azar”, eu não me maquio (nunca gostei, só passo batom nos lábios e lápis nos olhos) e minha irmã e mãe são chiques ao extremo, se arrumam, se maquiam, etc... gosto de viver de forma mais simples (amo vestidos, mas minhas roupas são mais práticas). Então a diferença é grande mesmo. Uma “piadinha” de meu irmão claro era, quando visitávamos minha mãe: “Chegou o navio negreiro”.
Uma vez, eu estava na casa de praia da família de minha irmã, com ela e outras pessoas (fica em um condomínio fechado). E uma amiga da sogra de minha irmã veio visitar. Ela entrou, cumprimentou a todos e deu uma olhada rápida para mim. Achei que fosse porque não nos conhecíamos, mas minha irmã apresentou e levantei a mão (que foi ignorada). Ela disse, “sua irmã? Nossa, não parece”, e ficou conversando com elas. Não me senti bem e fui para os quartos. Não queria ficar ali. Minha irmã sequer percebeu. Esta é apenas uma situação que passei.
Em várias vezes, dentro de lojas, supermercados, shoppings, eu percebi coisas como: em um supermercado geralmente um segurança me segue; uma vez, em uma loja do shopping, duas mulheres viram que entrei na loja e uma delas segurou a bolsa. E quando eu comentava com a minha irmã ou outras pessoas elas geralmente diziam: “ah, você está imaginando”, “cisma sua”, “não é bem assim”, etc. Gente, eu não sou louca. Eu percebo. E tive a confirmação disso quando passei a alisar o cabelo. A diferença de tratamento é enorme.
Já que falei do alisamento, vamos lá. Em um de meus empregos (em uma editora) conheci uma mulher que me mostrou uma foto antiga dela e reparei que ela tinha um cabelo crespo como o meu (na foto), mas agora era bem liso, solto e brilhante. Perguntei o que ela fazia e ela me deu endereço de um salão afro, onde alisava. Durante vários anos seguintes eu fui alisar meu cabelo lá. Lembram que falei de memórias olfativas? Pois é. Eu sentia o cheiro forte (como se meus cabelos estivessem sendo queimados). Lembro muito bem da primeira vez que saí de lá. Jurei que nunca mais faria isso. No primeiro dia o cabelo ainda ficava meio duro, mas no dia seguinte ele estava liso, caído, balançava quando eu andava... pentear o cabelo? Que facilidade! Quase nem precisava. Eu acordava e ele caía sobre os ombros. Gente! Que maravilha. E os elogios das pessoas? “Nossa, como seu cabelo está lindo!”, “como você está bonita”, etc...
Isso mexe muito com a gente. Foi ali que percebi que não me seguiam mais no supermercado e nas lojas, e as pessoas riam mais para mim. Então percebi claramente a diferença de tratamento e sei que não é imaginação minha, não é loucura minha, não é mimimi meu. Não é a toa que aquele meu juramento de nunca mais alisar, que eu fiz ao sair do salão, se transformou em anos de alisamento. Mas um dia cansei. Resolvi que deixaria meu cabelo crespo de novo. Uma transição difícil já que você tem parte do cabelo liso e a raiz crespa. Mas consegui.
Sobre este caso específico do BBB, quando li comentários de manhã e falei com uma pessoa do caso, ela falou que levam muito a sério, que é semelhante mesmo. Eu me calei (não deveria). Pois é, né? Bombril é semelhante, mas o cabelo não é Bombril! Percebo que é difícil falar certas coisas com quem não passa por isso. Quem é branco, rico, se veste bem, nunca entenderá o que é isso. E como estas coisas vão machucando... aos poucos. Estas coisas vão se infiltrando nos nossos ossos, roendo as nossas bases, até desmoronarmos (como foi o caso no BBB). Imagina se eu ficasse falando do cabelo liso de pessoas loiras: “nossa, seu cabelo parece cu de vaca lambido” É semelhante, então tudo bem, né? Não. Não está tudo bem. Parem com estas “brincadeiras”.
Outra coisa que costumo escutar de pessoas que fazem “piadinhas” e brincadeiras com amigos negros: “ah, mas ele mesmo faz piada de si”. Gente, conhecem o termo introjetar? Temos muitas coisas introjetadas em nós. Isso não significa que são boas. Por vezes podemos fazer piadas para sermos “aceitos”, por vezes fazemos sem perceber o mal disso, por vezes ficamos quietos quando deveríamos falar (pesquisem sobre racismo recreativo). Por exemplo: lembram do me irmão que falei que “brincava” do “navio negreiro que chegou”? Eu sinto uma certa dor ancestral destes negros que foram forçados a vir em navios que muitos morriam no caminho e eram jogados ao mar. Os oceanos são túmulos de várias histórias. Terríveis.
Por que resolvi falar tudo isso e mais um pouco? Vejo meninas (como minha sobrinha-neta) que tem os cabelos bem crespos e se sentem tristes com comentários. Parem! Parem de maltratar as pessoas! Parem de julgar por roupa, cabelo, maquiagem, etc. As pessoas são muito mais que isso tudo. Eu via muitas alunas ricas da Universidade que ficavam fazendo prancha todos os dias nos cabelos para terem os cabelos lisos, que pintavam os cabelos, uma padronização de bonequinhas loiras de cabelo liso. Gente! Somos diferentes. Somos seres humanos. Não se robotizem porque a “sociedade” assim quer. Perdi o número de quantas vezes escutei (e escuto) “por que você não corta o cabelo?” “por que você não arruma o cabelo?” “por que não alisa o cabelo de novo?” de amigos, de familiares. Eu quero o meu cabelo assim. Não me importa se vocês gostam ou não. Chega! Cansa ser julgada pela aparência.
Eu não sou só cabelo, roupa, maquiagem. Não sou só profissão, feitos, formação. Eu sou muito mais. Consegui me “rebelar”, mas tenho 57 anos. E se eu tivesse esta liberdade de hoje (que me dei) nos tempos de adolescência? Quão diferente teria sido minha história de vida?
Parem de querer padronizar. Graças que hoje em dia há negras em comerciais e não só aquelas loiras com cabelos esvoaçantes... eu alisei, meus cabelos balançavam com o vento, mas no fundo eu não era feliz. As crianças merecem que vejam a beleza de seus cabelos e corpos do jeito que são. Não destruam a alma destas crianças. Tenho por hábito elogiar as crianças negras que vejo nas ruas, porque sempre vemos as pessoas elogiando as crianças loiras de olhos claros. E toda vez que eu fazia isso, via os olhos brilhando dos pais, orgulhosos de escutarem um elogio para seus filhos.
Enfim, retornando ao BBB, para finalizar, eu gostei da fala do Thiago lembrando da luta, da resistência. E eu percebia que o Rodolffo não estava entendendo, pois voltava na justificativa do cabelo dele ou do pai negro. Gente, não interessa se eu tenho amigos negros, familiares negros, etc.. se não respeito, se não escuto, se não acolho a causa, estou errada. Vejam que eu não disse que é para dar voz. Nós temos voz. Precisamos de escuta. E isso eu não vi ali. Escutar não é ouvir. Escutar é refletir.
Para terminar, não basta não ser racista. Temos que ser antirracistas. E não, definitivamente, não é mimimi.
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