novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......

novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......
convido-os a desenrolar alguns fios reais e ficcionais

domingo, 9 de junho de 2013

FICÇÃO - Círculo Dantesco

O cavernoso ônibus estava lotado e um calor enxofroso sufocava a todos no coletivo. Em pé, carregando livros e sua bolsa pesada, prensada entre bolos de carne assada, Virginia quase não precisaria se segurar se não fosse o movimento brusco de freadas e curvas. Todos os bolos de carne em uma dança demoníaca.
Depois de uma hora nesta viagem ela chega à Instituição onde dá aulas de literatura. Por cinco horas participa de reuniões e palestras intermináveis que enchem seus ouvidos desatentos pelo cansaço. Ela se sente uma surda entre verborrágicos seres estranhos.
Sente uns bichinhos caminhando em seus pés assandaliados. Olha preocupada, pois detesta vermes ou insetos. Mas nada vê neles. Só a dor envolta pela sandália de salto, negra. E ela fecha o círculo quando retorna para casa, em mais uma hora perdida dentro da caverna de sombras.
De madrugada, acorda sobressaltada. Sonhou que passeava por um lugar estranho, e que um homem a agarrava por trás e tentava estuprá-la. A ânsia com que tentava se livrar daquele corpo quente grudado ao seu, empurrando com suas mãos as mãos peludas que tentavam enfiar os dedos em sua vagina e ânus, deixaram-na nauseada e sem ar. Acordou com a respiração BEM pesada. Arfando, tentava tirar as marcas indeléveis dos dedos ainda em seu corpo amolecido pelo medo. Sem abrir os olhos, tentou adormecer de novo, pois sabia que logo caminharia para um novo dia de suplício.
O despertador a acorda com som perfurante em seus tímpanos. Adormecida, desliga e já levanta. No automático, com gestos inconscientes, come o que tem. Bebe. Sai. O círculo recomeça: coletivo entupido. Lata de sardinhas estragadas que fedem já de manhã. O mesmo blá blá blá de disco quebrado. Repetições em compasso de tic tac apressado. Mais um dia que termina. Menos um dia de vida. Fecha o ciclo. Casa.
Com medo de pesadelos, comuns ultimamente, toma dez gotas de Rivotril (única herança do pai morto). A avalanche de carnes, salgadinhos e enlatados a empurram para um lago de bebidas misturadas. Ouve risos sádicos de pessoas inexistentes. Virginia se afoga na fermentação. Tenta escapar desse líquido espesso, mas seus pés se afundam no lodaçal podre e ela é engolfada pelo líquido. Novamente acorda do pesadelo, ainda sentindo borbulhas grudadas em seu cabelo, pálpebras e boca. Novamente não abre os olhos. Sente que se abri-los será pior. O medo a domina mais agora, do que no pesadelo.
Acorda. Um Sísifo carregando a pedra que sabia que escorregaria para novo dia de rotineiros desânimos.
As mesmas falas dos alunos, as mesmas dúvidas, os mesmos erros que ela tenta – em vão – corrigir. Concerteza, excessão, agente vai... agente vai... agente vai... para onde estou indo? - Pensa Virginia. Não saio do lugar! Estou presa em uma roda. Retorno ao “lar”. Estou tão cansada. Queria tanto viajar. Calma, Virginia, o dinheiro que você está guardando é para isso. O final do ano está chegando. Logo irá descansar!
Nova noite de lua velha. Ao deitar sente que bichinhos estão caminhando sobre sua pele. Levanta em um pulo e acende a luz. Observa seu corpo. Não há nada. Observa com cuidado a cama, levanta os lençóis (quem sabe as famigeradas aranhas marrons?). Nada! Deita com o soturno companheiro noturno: o pavor.
Virginia está feliz. Sonha que está ganhando cada vez mais dinheiro. As moedas e cédulas vão se empilhando ao seu redor, dentro do quarto. Ela sorri para cada novo monte que surge. Mas, de repente, percebe que um morrinho de dinheiro sumiu. Parentes, amigos, alunos, colegas do trabalho estão pegando seu dinheiro... levando embora. Ela tenta impedi-los, mas as imagens deles com o dinheiro evaporam-se ao menor contato de seus dedos ávidos. Acaba nua, em seu quarto totalmente vazio. Não tem mais nada. Até o ar está se esgotando no ambiente. Novo despertar antigo, com o mesmo arfar na busca asmática.
Com os olhos fechados, ela sente a raiva por todos aqueles que a roubaram. Que furtaram seu direito de descanso de férias. O ódio a penetra como vermes que devoram sua carne com dentes metálicos afiados.
Esse sentimento funesto a acompanha por todo o dia. Ela xinga o cobrador. Briga com o motorista. Discute com o chefe. Dá tapas em sua mãe. Grita com os alunos. Soca o irmão. De noite, ao adormecer, se vê em uma Igreja. Ela é luminosa e os raios coloridos dos vitrais ferem seus olhos. Ela vê o padre no altar e sente desejos. Pega uma bíblia e começa a se masturbar nela. Está quase gozando quando escuta pessoas gritando. Abre os olhos do êxtase e vê dedos ríspidos apontando para ela. Todos começam a jogar bíblias em Virginia, que para de se masturbar e tenta se defender.
Ela é “salva” pelo despertador que toca furioso. Nova roda de Samsara girando. Virginia passa o dia atordoada. Tenta falar com o namorado que a avisa que está muito ocupado e que não pode conversar agora. Que se verão no fim de semana apenas... como sempre. O desejo ainda está presente, latejando em seu corpo. Ela vai ao banheiro na sala de professores e começa a se masturbar. Pensa nos namorados antigos. No chefe bonitão. No outro professor do curso de Letras. Goza diversas vezes, mas não sente prazer real. Um vazio vai se infiltrando junto com a sensação de vermes que passeiam pelos seus braços. Ela olha assustada e nada vê. Suspira. Vai dar a última aula do dia, antes do retorno ao doce lar.
Mas esta aula acaba sendo uma surpresa para Virginia. Os alunos em peso começam a contestá-la. Ela não sabe responder às perguntas. Sente-se acuada. Eles a acusam de falsa. De mentirosa. De ser uma fraude. Assustada, sem conseguir impor-se como autoridade, ela determina que aula terminou e sai da sala que aos gritos continua acusando-a.
Exausta, sentindo que se encontra em um eterno retorno de dor e sofrimento, uma ideia a cutuca de leve. Estou cansada disso tudo. Nada muda. O desânimo é demais! Com mais Rivotril ela se deita.
Escuta seu namorado a avisando que não poderá vê-la. Faz tempo que ele não a chama de meu amor, que não diz que a ama. Desliga o telefone. Mas, nas possibilidades apenas presentes em sonhos ou pesadelos, ela o vê no telefone. Ele está falando docemente com alguém. Chama esta pessoa de querida, de doce. Diz que a ama e que logo estará com ela. Não.. eu não estou ocupado.. Eu nunca estarei ocupado para você, meu amor. Virginia sente o gelo estacado em seu coração. Acorda com a dor ainda presente no peito e sente vermes sobre seus olhos, formigas enchendo sua boca. Finalmente tem coragem de abrir os olhos...
... e vê...

... a tampa do caixão.
(texto: Susan Blum. Imagens: internet.)

2 comentários:

  1. Bacana, conto bem forte horripilante tem um jeitinho de Poe também, mostra que morrer pode ser o começo dos pesadelos e não o fim deles.

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    1. Que bom que gostou, Tiago! A intenção foi esta mesma! Morrer pode não ser o fim dos pesadelos.

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