O cavernoso ônibus
estava lotado e um calor enxofroso sufocava a todos no coletivo. Em pé,
carregando livros e sua bolsa pesada, prensada entre bolos de carne assada,
Virginia quase não precisaria se segurar se não fosse o movimento brusco de freadas
e curvas. Todos os bolos de carne em uma dança demoníaca.
Depois de uma hora
nesta viagem ela chega à Instituição onde dá aulas de literatura. Por cinco
horas participa de reuniões e palestras intermináveis que enchem seus ouvidos
desatentos pelo cansaço. Ela se sente uma surda entre verborrágicos seres
estranhos.
Sente uns bichinhos
caminhando em seus pés assandaliados. Olha preocupada, pois detesta vermes ou
insetos. Mas nada vê neles. Só a dor envolta pela sandália de salto, negra. E
ela fecha o círculo quando retorna para casa, em mais uma hora perdida dentro
da caverna de sombras.
De madrugada, acorda
sobressaltada. Sonhou que passeava por um lugar estranho, e que um homem a
agarrava por trás e tentava estuprá-la. A ânsia com que tentava se livrar
daquele corpo quente grudado ao seu, empurrando com suas mãos as mãos peludas
que tentavam enfiar os dedos em sua vagina e ânus, deixaram-na nauseada e sem
ar. Acordou com a respiração BEM pesada. Arfando, tentava tirar as marcas
indeléveis dos dedos ainda em seu corpo amolecido pelo medo. Sem abrir os
olhos, tentou adormecer de novo, pois sabia que logo caminharia para um novo
dia de suplício.
O despertador a
acorda com som perfurante em seus tímpanos. Adormecida, desliga e já levanta.
No automático, com gestos inconscientes, come o que tem. Bebe. Sai. O círculo
recomeça: coletivo entupido. Lata de sardinhas estragadas que fedem já de
manhã. O mesmo blá blá blá de disco quebrado. Repetições em compasso de tic tac
apressado. Mais um dia que termina. Menos um dia de vida. Fecha o ciclo. Casa.
Com medo de
pesadelos, comuns ultimamente, toma dez gotas de Rivotril (única herança do pai
morto). A avalanche de carnes, salgadinhos e enlatados a empurram para um lago
de bebidas misturadas. Ouve risos sádicos de pessoas inexistentes. Virginia se
afoga na fermentação. Tenta escapar desse líquido espesso, mas seus pés se
afundam no lodaçal podre e ela é engolfada pelo líquido. Novamente acorda do
pesadelo, ainda sentindo borbulhas grudadas em seu cabelo, pálpebras e boca.
Novamente não abre os olhos. Sente que se abri-los será pior. O medo a domina
mais agora, do que no pesadelo.
Acorda. Um Sísifo
carregando a pedra que sabia que escorregaria para novo dia de rotineiros
desânimos.
As mesmas falas dos
alunos, as mesmas dúvidas, os mesmos erros que ela tenta – em vão – corrigir.
Concerteza, excessão, agente vai... agente vai... agente vai... para onde estou
indo? - Pensa Virginia. Não saio do lugar! Estou presa em uma roda. Retorno ao
“lar”. Estou tão cansada. Queria tanto viajar. Calma, Virginia, o dinheiro que
você está guardando é para isso. O final do ano está chegando. Logo irá
descansar!
Nova noite de lua
velha. Ao deitar sente que bichinhos estão caminhando sobre sua pele. Levanta
em um pulo e acende a luz. Observa seu corpo. Não há nada. Observa com cuidado a
cama, levanta os lençóis (quem sabe as famigeradas aranhas marrons?). Nada!
Deita com o soturno companheiro noturno: o pavor.
Virginia está feliz.
Sonha que está ganhando cada vez mais dinheiro. As moedas e cédulas vão se
empilhando ao seu redor, dentro do quarto. Ela sorri para cada novo monte que
surge. Mas, de repente, percebe que um morrinho de dinheiro sumiu. Parentes,
amigos, alunos, colegas do trabalho estão pegando seu dinheiro... levando
embora. Ela tenta impedi-los, mas as imagens deles com o dinheiro evaporam-se
ao menor contato de seus dedos ávidos. Acaba nua, em seu quarto totalmente
vazio. Não tem mais nada. Até o ar está se esgotando no ambiente. Novo
despertar antigo, com o mesmo arfar na busca asmática.
Com os olhos
fechados, ela sente a raiva por todos aqueles que a roubaram. Que furtaram seu
direito de descanso de férias. O ódio a penetra como vermes que devoram sua
carne com dentes metálicos afiados.
Esse sentimento
funesto a acompanha por todo o dia. Ela xinga o cobrador. Briga com o motorista.
Discute com o chefe. Dá tapas em sua mãe. Grita com os alunos. Soca o irmão. De
noite, ao adormecer, se vê em uma Igreja. Ela é luminosa e os raios coloridos
dos vitrais ferem seus olhos. Ela vê o padre no altar e sente desejos. Pega uma
bíblia e começa a se masturbar nela. Está quase gozando quando escuta pessoas
gritando. Abre os olhos do êxtase e vê dedos ríspidos apontando para ela. Todos
começam a jogar bíblias em Virginia, que para de se masturbar e tenta se
defender.
Ela é “salva” pelo
despertador que toca furioso. Nova roda de Samsara girando. Virginia passa o
dia atordoada. Tenta falar com o namorado que a avisa que está muito ocupado e
que não pode conversar agora. Que se verão no fim de semana apenas... como
sempre. O desejo ainda está presente, latejando em seu corpo. Ela vai ao
banheiro na sala de professores e começa a se masturbar. Pensa nos namorados
antigos. No chefe bonitão. No outro professor do curso de Letras. Goza diversas
vezes, mas não sente prazer real. Um vazio vai se infiltrando junto com a
sensação de vermes que passeiam pelos seus braços. Ela olha assustada e nada
vê. Suspira. Vai dar a última aula do dia, antes do retorno ao doce lar.
Mas esta aula acaba
sendo uma surpresa para Virginia. Os alunos em peso começam a contestá-la. Ela
não sabe responder às perguntas. Sente-se acuada. Eles a acusam de falsa. De
mentirosa. De ser uma fraude. Assustada, sem conseguir impor-se como
autoridade, ela determina que aula terminou e sai da sala que aos gritos
continua acusando-a.
Exausta, sentindo que
se encontra em um eterno retorno de dor e sofrimento, uma ideia a cutuca de
leve. Estou cansada disso tudo. Nada muda. O desânimo é demais! Com mais
Rivotril ela se deita.
Escuta seu namorado a
avisando que não poderá vê-la. Faz tempo que ele não a chama de meu amor, que
não diz que a ama. Desliga o telefone. Mas, nas possibilidades apenas presentes
em sonhos ou pesadelos, ela o vê no telefone. Ele está falando docemente com
alguém. Chama esta pessoa de querida, de doce. Diz que a ama e que logo estará
com ela. Não.. eu não estou ocupado.. Eu nunca estarei ocupado para você, meu
amor. Virginia sente o gelo estacado em seu coração. Acorda com a dor ainda
presente no peito e sente vermes sobre seus olhos, formigas enchendo sua boca.
Finalmente tem coragem de abrir os olhos...
... e vê...
... a tampa do
caixão.
(texto: Susan Blum. Imagens: internet.)
Bacana, conto bem forte horripilante tem um jeitinho de Poe também, mostra que morrer pode ser o começo dos pesadelos e não o fim deles.
ResponderExcluirQue bom que gostou, Tiago! A intenção foi esta mesma! Morrer pode não ser o fim dos pesadelos.
Excluir