Uma breve leitura de Bix Beiderbecke
Se o caro leitor dessas cronópias linhas ainda não
leu o conto inacabado de Cortázar, por favor, procure-o imediatamente.
Finalmente traduzido, por Cassiano Viana, e lido no Odeon (Cinelândia - Rio de
Janeiro) em 12 de julho de 2006, Bix Beiderbecke é considerado o último conto
escrito por Cortázar.
O conto, como já dito, é inacabado. Ele termina em
reticências porque foi impossível decifrar as últimas palavras, conforme
citação de Cassiano na publicação de Bix: “Cortázar escrevia à máquina, mas
fazia suas correções à mão e nesse conto específico foi impossível decifrar as
quatro últimas palavras na última página elaborada; assim, ficou resolvido que
iriam publicá-lo finalizando com reticências” (Viana,
2006, p. 14). Mas, na verdade, pouco importa se Cortázar terminaria o conto com
um ponto final ou até com uma exclamação! Pois as reticências e as
interrogações são elementos recorrentes em sua obra (se não textualmente, com
certeza em seu contexto).
Inacabado! Essa palavra incomoda. Ao lermos as
últimas palavras do conto ficamos esperando mais. É típico do ser humano gostar
de linearidade em sua vida, e não estou aqui falando apenas de literatura.
Começo, meio e fim são importantes, seja em um caso de amor, em um trabalho ou
em situações familiares. Procuramos sempre um ponto final. Aceitamos uma
exclamação! Mas as interrogações e as reticências incomodam... coisas
inacabadas são como promessas desfeitas. São uma situação suspensa no ar.
Apesar disso, o fato de estar inacabado não
desvaloriza o conto, pois, como disse o personagem de Cristóvão Tezza em Breve espaço entre cor e sombra: “Não se
surpreenda: as obras de arte também obedecem às leis do DNA. Um pedaço contém
potencialmente todo o resto. (...) Eu acho que isso acontece com todas as
artes. Na literatura, por exemplo. Kafka tinha o costume de não acabar os
livros; não precisava. A parte contém previamente o todo” (Tezza, 1998, p. 19). Também no conto
encontramos o DNA de Cortázar: um DNA visual-sonoro, um DNA espaço-tempo, um
DNA erótico.
E são esses DNA minúsculos, essas reticências, que
passam a povoar o interior do leitor, fazendo-o sentir-se perdido em um
meio-termo, em um entre-lugar. Somos deslocados por Cortázar e empurrados
através de um ponto vélico que nos revela outras realidades possíveis. Cito o
ponto vélico e me coloco na obrigação de explicar o termo, ainda desconhecido
para a grande maioria das pessoas. Cortázar o cita em um ensaio intitulado “do
sentimento do fantástico”[1]
aproveitando a escrita de Victor Hugo: “ ‘Ninguém ignora o que é o ponto vélico
de um navio; lugar de convergência, ponto de intersecção misterioso até para o
construtor do barco, no qual se somam as forças dispersas em todo o velame
desfraldado’ (...) O fantástico força uma crosta aparente, e por isso lembra o
ponto vélico; há algo que encosta o ombro para nos tirar dos eixos” (Cortázar, 1993, p. 179). Assim,
considero ponto vélico qualquer elemento (pessoa, objeto, fala, acontecimento)
que nos desloca, que nos faz refletir sobre novas possibilidades e sobre
encontros fortuitos (que, como afirma Cortázar, não o são), que nos faz abrir
os olhos para outras realidades[2].
No caso desse conto o ponto vélico é a música, que
carrega em suas notas o espírito da panamenha (e do leitor) para outro espaço e
tempo, mantendo contato com o músico Bix (e de certa forma, também com o
político Omar). Cassiano Viana teve o cuidado profissional de levantar dados
sobre os dois personagens. Descobriu que Omar é, provavelmente, Omar Torrijos
Herrera, presidente do Panamá, morto em um acidente de avião em 1981.
Lembrem-se que Cortázar deixou de brincar, nesta realidade, em 1984. Já Bix,
músico de jazz, faleceu em 1931. Cinquenta anos separam a morte dos dois
personagens do conto. Mas, e daí? Tempos e espaços são apenas formalidades.
Formalidades essas que Cortázar dispensa com todo o prazer de uma criança que
está brincando...
Retornando à questão musical, é interessante
observar que a vida da panamenha é como um filme (imagens e sons). O visual,
tanto dos olhares de Omar para ela (assim ela o achava), quanto os reflexos no
espelho, de sua família que vinha observá-la “entretida” no discurso político
da TV. E o sonoro com as músicas de Bix, já falecido, mas ainda vivo e presente
(talvez mais do que nunca) através de sua música. Essa passagem temporal, que a
música permite, já foi abordada por Cortázar em outros instantes de sua obra
(“el perseguidor”, por exemplo); além da gravação que fez de alguns de seus
contos em cd, e que brinca que está falando para pessoas que não estão
presentes, e que depois ele pode não
estar mais presente quando as pessoas o escutarem.
É o famoso estranhamento na obra de Cortázar:
desordem do tempo e do espaço cotidianos. Quem garante que a panamenha não está
ainda em um terceiro tempo e espaços, diferente do de Bix e diferente do de
Omar? Pode-se ler o conto como o devaneio da jovem panamenha, de imaginação
fértil, fantasiando Omar com seus discursos políticos e, após a morte dele,
transferindo seu desejo para Bix. Afinal ela conheceu a ambos na mesma época
(cf. p. 06): Omar pela televisão, (outro ponto vélico?) em que, para ela, ele
apenas o fazia para observá-la no sofá. E Bix através do disco que um primo
mostrou. A panamenha afirma: “Claro que Bix não podia me olhar como Omar; nos tempos
de Bix não havia televisão, mas que importava?” (Viana, 2006, p. 07). Para ela, Bix a olhava como Omar, mas
através da música. Assim como certas palavras de Omar eram escolhidas por ela
para serem exclusivas à si própria, também certas notas ou solos eram somente
para ela. Típico de adolescentes que se creem o centro do universo.
Um a olhava pela TV aos domingos e o outro na casa
da namorada do primo. Quando soube da morte de Omar (desfazendo assim toda e
qualquer esperança de algum dia se encontrarem de verdade, supondo que os
tempos e espaços sejam os mesmos), ela abraçou o disco (a única esperança que
lhe restou), mas o largou logo em seguida. Com este ato sabia, de antemão, que
também perderia Bix, pois seus pais o jogariam fora (como de fato ocorreu).
Nesse ponto houve a transformação, como se Omar lhe
mostrasse outras possibilidades de contatos, o próprio corpo da panamenha se
revela (em outra menstruação) mostrando-lhe como ter contato com Bix de outra
forma, que não a platônica. Nesse momento ela fica com Pedro (apenas porque era
jovem como Bix), e, ouvindo a música de Bix, Royal garden blues, transformou a dor da penetração em gozo.
Quando a panamenha comenta que estava em Ohio ou
Maryland com Bix e seus rapazes ela cita a drogadição com hash, e isto pode levar o leitor a pensar nas alucinações de
pessoas que estão sob o efeito dessa droga. Esta ideia pode ser corroborada
pela repetição de que é panamenha e logo em seguida está em Ohio ou Maryland. O
amalgamento de não somente tempos, mas também de espaços, provoca novo
estranhamento. Além disso ela também usa as palavras como uma droga, para se
aproximar do leitor/ouvinte, como se nos acariciasse ou nos lambesse (cf. p.
10).
Ao encontrar Bix ela afirma que não aguenta mais o
fato dele estar sempre observando-a. Esta afirmação provoca uma troca de
papéis, pois ele sugere que ela o observe, o que ela fará, seguindo a Bix em
suas excursões. É interessante quando ela comenta da vida de Bix, que lá pelas
cinco da tarde “os olhos iam ficando de vidro” (p. 11), pois esse comentário
tanto pode ser relacionado com o problema com álcool ou drogas, quanto pode
remeter ao olhar vitrificado, porque televisivo, de Omar.
Outro ponto interessante é quando a panamenha fala
do show de Bix da noite anterior e diz que o verá no próximo, ao que ele
rebate: “espero que não sejas uma dessas fanáticas que não perdem um. É algo
que nunca pude suportar, duas vezes o mesmo rosto no meio da platéia me tira
até a vontade de viver. Sinto como se fosse necessário repetir os solos que
toquei na noite passada e isso é algo que não farei jamais na vida”. (Viana, 2006, p. 11). Essa não repetição,
esse viver diferente a cada instante, essa necessidade de se observar coisas
novas é o que, de certa forma, a panamenha faz ao colocar-se vivendo junto com
Bix. Mas a repetição pode ocorrer. Não sabemos ao certo onde nos situamos, em
que espaço e tempo nos deslocamos. Tal qual em uma fita de Moebius[3],
podemos crer piamente que vivemos uma única e “real” realidade. Quando na
verdade estamos pisando em duas faces de uma “realidade”. Assim, a panamenha
está em uma realidade em que Bix não mais vive, mas consegue penetrar em outra,
na qual Bix está mais vivo do que nunca e convive com ela. É um caminho novo e
ao mesmo tempo recorrente. Como disse Bix: “quem sabe numa dessas noites não
começo a copiar a mim mesmo, não seria o primeiro” (Viana, 2006, p. 12).
Enfim, ao repensar a questão do visual/sonoro,
lembro de Cortázar, em uma carta à sua amiga Duprat, falando de pintura e de
música. Na carta, Cortázar diz que talvez pintar à óleo seja como copiar a
realidade mais imediata da paisagem, sua correspondência mesma. Já a aquarela
captaria mais o “espírito” da paisagem, seria mais o voo da andorinha do que
ela em si. Nesse sentido, ele compara essas pinturas com a música, dizendo que
a pintura à óleo seria uma orquestra sinfônica e que a aquarela seria um
quarteto de cordas, mais íntimo, mais sumido e menos exterior (cf. Cócaro, p. 21). Esse conto inacabado, é
um quarteto de cordas, uma aquarela diluída que Cortázar nos brinda,
simbolizando talvez a vida e a obra inacabadas de Bix. E agora,
coincidentemente, sem Cortázar, a ponte inacabada entre autor e leitor, a ponte
sobre um infinito de possibilidades.
Por fim, podemos agora fechar os olhos, aguçar os
ouvidos e... escutaremos um dueto. Um dueto formado por Bix e Cortázar, tocando
para Omar, para a panamenha e para nós!
Referências bibliográficas:
Cócaro. N. El joven Cortázar. Argentina: ediciones
del Saber, 1993.
Cortázar,
J. Bix Beiderbecke. (trad. Cassiano
Viana). Incluso os textos “O último solo?” de Viana e “Sobre traduções e textos
inacabados” de Löis Lancaster. Rio de Janeiro: Pocket Cat/Carlota edições,
2006.
Cortázar,
J. Valise de cronópio. São Paulo:
Perspectiva, 1993.
Moura,
S. B. P. Abrindo as portas para ir
brincar nos espaços de Final del juego.
Dissertação. Curitiba: UFPR, 2004.
Tezza,
C. Breve espaço entre cor e sombra.
[1] Que o
leitor encontra no livro Valise de
Cronópio.
[2] Sobre
essa concepção favor ler a dissertação “Abrindo as portas para ir brincar nos
espaços de Final del juego”, na internet.
[3] Coloco
aqui a fita de moebius para que se possa observar como, se
estivéssemos andando nela, estaríamos sempre andando em uma única face, quando
na verdade são dois lados que existem. Basta perfurar a fita com uma agulha
para ter esta certeza de duas “realidades” ou então nos afastarmos um pouco
para vermos (do lado de fora da situação se observa melhor, não é o que
dizem?). O mesmos e dá com a panamenha. Ela tem certeza de que vive um único
“caminho” quando na realidade percorre duas facetas.
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