novelos soltos, emaranhados, organizados, escondidos, fiapos da vida......

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convido-os a desenrolar alguns fios reais e ficcionais

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

FICÇÃO - Presente de grego


Eu estava para entrar no meu edifício quando a vi. Minto. Na verdade eu já a observava quando virei a esquina, pois seu corpinho encurvado, seus passos trôpegos e seu olhar assustado, já me indicavam uma boa personagem.
Quando eu estava para abrir meu portão, ela estava bem próxima e me perguntou com seus olhinhos azul mar calmo e uma voz límpida: “Eu moro aqui?”.
Aquela pergunta me perturbou profundamente. Respondi calmamente: “Não sei, mas vamos perguntar ao meu porteiro”.
Recebi uma negativa junto com uma colocação que me deixou ainda mais perturbada: “ela está andando a manhã toda por aqui por perto. Vai, volta, fica olhando os prédios e balbuciando algo. Acho que está perdida.” Novamente a olhei. Percebi que por baixo do grosso e longo casaco preto ela estava de pijamas e pantufas.
E ninguém a procurou até agora? Pergunto eu, recebendo nova negativa. Bom, era meu horário de almoço. Então resolvi que iria com ela de prédio em prédio até achar onde morava. Iniciei pela minha rua mesmo, que tinha uns seis prédios só na minha quadra. Depois fui dando a volta no quarteirão, fazendo um redemoinho com a senhorinha a tiracolo, o que prolongava mais o tempo, pois os passos incertos me preocupavam. Suas mãos trêmulas, com dedos magros e quase azulados, volta e meia passavam por seus cabelos branquíssimos desalinhados.
Na terceira volta do redemoinho, a três quadras de minha casa, o porteiro de um prédio me chamou ao me ver quase entrando no prédio da frente. “Dona Endaira, aqui!” Vi que a senhora parou. Parei também. O porteiro veio e me disse que a senhorinha morava ali, no Edifício Creta. Que eu podia deixar com ele. 
Ao ver o olhar assustado da senhorinha resolvi que deveria entregar eu mesma à família e insisti neste ponto com ele. Após um tempo ele interfonou para o apartamento do sétimo andar, dizendo que a Dona Endaira estava acompanhada.
Permitiram a minha subida. Ao entrar no elevador percebi que a senhorinha tremia muito. Fiquei imaginando que as ondulações que percorriam seu corpo era por estar reconhecendo o ambiente.
Toquei a campainha e um rosto juvenil escancarou a porta, sorrindo pra mim e para a senhorinha. “Vovó querida! Que susto que me deu!” E me explicou que a vó havia saído enquanto ela dormia de manhã cedo. Feliz por ter cumprido meu dever, por ter dado àquela senhorinha um presente (seu retorno ao lar), sorri e me despedi dela, que me deu um abraço tão forte que jamais imaginaria para um corpo tão frágil.

Fecharam a porta e apertei o botão do elevador ao mesmo tempo que escutei um barulho surdo vindo de dentro do apartamento, seguido de uma voz ríspida: “Que merda vovó. Já falei pra você não sair daqui!”
(Texto: Susan Blum. Imagem: retirado de http://studio58cartoons.blogspot.com.br/2012/09/velhinha.html)

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